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Escrevi este guião, mas nunca quis ver o filme

    Se o percurso profissional de um guionista fosse uma série de televisão, esta teria várias temporadas e seria pontuada, aqui e ali, por alguns episódios mais marcantes. No meu Breaking Bad pessoal, o episódio que conto a seguir foi um desses.

    A primeira tentação que tive foi compará-lo com o sinistro capítulo do Casamento Vermelho de Game of Thrones, mas recuei por ser um pouco de exagero. Ambos os episódios são sobre massacres, é certo, mas no meu caso só um guião foi vítima.

    Vejamos então a sinopse desta pequena estória.

    Teaser

    Algures em 2009 recebi uma mensagem de uma diretora de produção, a Manuela Ribas, uma boa amiga que muito prezo e com quem já tinha trabalhado várias vezes antes, a perguntar-me se teria disponibilidade para fazer uma revisão rápida do guião de uma longa-metragem que ia entrar em produção (e que na altura se chamava A Casa).

    Primeiro ato

    Nessa altura trabalhava com as Produções Fictícias e estava envolvido em vários projetos, mas como é evidente a possibilidade de colaborar na escrita de mais uma longa-metragem era muito atrativa. Mesmo assim, pedi para ler o guião antes de me comprometer. Não gosto de aceitar este tipo de trabalho se não tiver a certeza de que:

    a) conseguirei acrescentar valor
    b) não será um suplício
    c) contribuirá positivamente para a minha carreira

    Ela enviou-me o documento e, após lê-lo duas ou três vezes e tirar as minhas notas, respondi com uma mensagem que quis que fosse muito clara:

    Já li o guião e percebo porque é que precisam de uma mãozinha: este guião tem muitos, muitos problemas. E aviso desde já que não consigo resolvê-los em 15 dias. Para esta reescrita preciso, no mínimo, de um mês. Por isso, se não dispõem desse tempo e estão dispostos a avançar com uma estória com potencial, mas mal resolvida, teremos de nos separar aqui.

    Se quiserem avançar com a reescrita, também preciso de saber se posso avançar com soluções “radicais” (que eu acho que são necessárias) ou se tenho de me ater a todos os pressupostos que estão neste guião, tentando só corrigir os problemas mais graves.

    A resposta demorou algum tempo a chegar, mas foi positiva: podia avançar com as soluções “radicais” que achasse necessárias, desde que não tivessem impacto significativo no custo da produção.

    Segundo ato

    O processo de reescrita foi relativamente normal, embora bastante extenso. Partindo da versão do guião que me foi entregue, aproveitei a ideia central e o núcleo básico de personagens que a sustentavam. Fiz vários outlines e um tratamento, para meu consumo próprio, e quando me senti finalmente satisfeito com o novo rumo, meti mãos à escrita.

    A nova versão do guião, que entreguei algumas semanas depois, tinha mudanças muito significativas. Estas iam desde a alteração geral da estrutura, com a eliminação de toda a parte inicial da estória, mudança significativa do enredo e modificação do clímax e conclusão, até à criação de novos personagens e extensa revisão e escrita dos diálogos.

    Tudo isto traduziu-se na eliminação de inúmeras cenas, criação de muitas mais, e alteração geral das restantes.

    Enviei o guião para a produção e preparei-me para aguardar alguns dias por feedback, como seria normal. Para minha surpresa, recebi no mesmo dia um telefonema do autor da estória original, e seu realizador, o saudoso Nicolau Breyner, que me garantiu entusiasticamente que “esta é a estória que eu queria filmar“.

    Terceiro ato

    Neste processo, que resumo bastante, cometi um erro contra o qual estou sempre a alertar os meus alunos e os leitores deste blogue: por razões processuais diversas, que já nem recordo, iniciei, terminei e entreguei o guião sem ter ainda o contrato definitivo assinado com a produtora.

    Verdade seja dita, esse atraso não teve nenhum impacto nos pagamentos dos meus serviços de guionista, pois, se bem me lembro, foram processados normalmente. No entanto, conduziu a uma situação que hoje considero paradoxal (como o leitor poderá compreender se ler este artigo até ao fim).

    Por alguma razão, o autor original Nicolau Breyner mostrou-se renitente a dar-me a coautoria do guião, apesar de, como já referi acima, mais de cinquenta por cento dele ser totalmente o meu, e de ter tido uma muito significativa contribuição em quase todos os aspetos do restante, desde o ritmo e estrutura às descrições e diálogos.

    Assim, entre a entrega do guião e o início das filmagens (que acabou por ser bastante mais tarde) passei um tempo significativo a discutir a questão da autoria no contrato, sempre com o apoio da minha agente nessa época, a querida Teresa Schmidt, num processo convulso que até advogados envolveu.

    Finalmente, após muito vaivém, acabámos por acordar numa formulação para os créditos que me pareceu ser justa: “Argumento original de Nicolau Breyner” e “Guião de Nicolau Breyner e João Nunes“.

    Acabou por ser um erro. Melhor teria sido se tivesse prescindido totalmente da coautoria, como percebi mais tarde.

    Quarto ato

    Depois da entrega da versão final do guião, avancei para outros projetos, como sempre acontece, e A Casa passou para segundo plano nas minhas preocupações.

    Fast forward alguns meses, e soube que a produção decorria, com gravações na Serra da Estrela. Estranhei não ter sido convidado, como coautor, para fazer uma visita ao set, conhecer os atores, acompanhar um dia das filmagens, mas devia estar envolvido noutras escritas porque nem dei grande importância a esse facto.

    Até que assisti a um programa semanal de cinema, penso que na RTP, em que se mostrava uma reportagem sobre a gravação das cenas finais de A Casa, num cenário alvo e coberto de neve.

    Para minha surpresa, as imagens do making of revelavam que o final gravado era o do guião original, e não o da versão que escrevi e que pensava ter sido aprovada. Como se pode imaginar, fiquei em estado de choque.

    Por portas travessas consegui uma cópia do shooting script, que confirmou os meus piores receios: o guião revertera à versão original na maioria dos seus aspetos-chave, incluindo a sua conclusão.

    Cometi, nessa altura, o meu segundo erro neste processo. Deveria ter de imediato exigido a remoção do meu nome dos créditos, o que, face ao que descrevi antes, com certeza teria sido fácil. Mas por alguma razão, cujo processo mental não consigo presentemente recordar, reproduzir nem entender, não o fiz.

    Por causa disso, tenho o meu nome associado a um filme que tem péssimas críticas (inclusive, críticas diretas ao guião) e que vários amigos da área, que o viram, asseveram-me ser mesmo muito mau.

    Eu, nunca tive coragem de o assistir.

    Não estava em Portugal quando passou brevemente pelas salas e, quando saiu o DVD, nem tive forças para rasgar a cobertura de celofane. Está guardado na minha coleção de discos, ainda com o preço original à vista, para me recordar este episódio.

    Tag

    O Nicolau Breyner já nos deixou há alguns anos, e tenho pena de nunca me ter voltado a cruzar com ele para lhe pedir uma explicação sobre o que o terá levado a reverter caminho. Com certeza terá havido um racional para essa decisão, e ele com certeza ter-mo-ia dado.

    De qualquer forma, não penso muito nisso. Durante a vida todos cometemos erros; o importante é o que podemos aprender com eles.

    Termino deixando aqui a cena final da minha versão da estória, e o guião completo, para quem possa estar interessado.

    Penso que não é um mau guião.

    EXT. BOSQUE NEVADO – DIA

    Uma chama intensa arde no meio da neve. Jorge está ajoelhado ao lado de uma fogueira feita com alguns paus. É a cena inicial do filme, mas com mais um detalhe: Jorge lança UM PUNHADO DE NOTAS para as chamas. É com o dinheiro que Jorge está a alimentar a fogueira, pormenor que não vimos antes.

    JORGE

    Quanto é que vale uma vida? A minha vida? Cem mil euros? Duzentos mil? Um milhão?

    Jorge tacteia a mochila e retira mais algumas notas do seu interior.

    A coluna de fumo recorta-se contra a alvura da neve que cobre as ramadas dos pinheiros e carvalhos que compõem o bosque.

    Jorge lança mais essas notas para a fogueira.

    JORGE

    Já fiz as contas um monte de vezes, e a única conclusão a que cheguei é que vale o que for preciso.

    Um LOBO surge na orla de árvores e pára, olhando para Jorge. Este retira mais algumas notas da mochila.

    JORGE

    Espero que alguém ande por aqui no meio deste nevão, e me descubra antes de eu morrer de frio.

    OUTRO LOBO surge ao lado do primeiro, e mais OUTRO ainda.

    JORGE

    Sei que é esperar muito mas qual é a alternativa? Sentar-me e morrer?

    O primeiro lobo dá um passo na direcção de Jorge.

    CORTA BRUSCAMENTE PARA:

    GENÉRICO FINAL

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