Avançar para o conteúdo

Grandes diálogos: O Apartamento

    Num artigo de 2013 apresentei uma lista dos meus guiões de cinema favoritos, lista essa que, apesar dos anos passados, se mantém bastante atual, sem exigir alterações de monta. A cena que hoje apresento é retirada de um desses filmes, O Apartamento.

    Escrito por Billy Wilder e pelo seu parceiro usual, o guionista I.A.L. Diamond, e produzido e realizado pelo próprio Billy Wilder, O Apartamento é uma comédia romântica agridoce. É um filme representativo de um estilo muito popular nos anos 50, mas já imbuído de algum do espírito dos 60s, quando o sonho americano começou a mostrar as primeiras fissuras.

    O filme conta a estória de Bud (interpretado por Jack Lemmon), um jovem executivo cuja rápida ascensão profissional se deve em grande parte ao facto dele emprestar o apartamento onde vive aos seus superiores para eles levarem lá as amantes. Tudo se complica quando Bud descobre que uma dessas amantes é precisamente Fran (Shirley MacLaine), a colega de trabalho por quem está apaixonado.

    A cena que escolhi para este artigo — uma tarefa difícil num guião tão recheado de cenas sensacionais — mostra-nos o momento em que Bud faz essa descoberta, graças ao vidro quebrado de um pequeno estojo de maquilhagem que encontrara no seu apartamento depois de uma vez mais o ter cedido ao seu chefe.

    É um excelente exemplo de ironia dramática, pois Bud fica nessa cena a saber algo que os espectadores já sabiam há algum tempo.

    Esta revelação tão importante, que ocorre entre as páginas 66 e 69 de um guião de 155 páginas, inicia uma sequência que termina na página 91, numa outra cena em que Fran descobre por sua vez que Bud é o dono do apartamento, resolvendo-se assim a outra metade dessa mesma ironia dramática. No seu conjunto, as duas cenas constituem uma espécie de sequência de Ponto Médio da narrativa, que implica uma mudança drástica no seu curso.

    Aprecie a seguir esta magnífica cena (tradução da minha responsabilidade, que me perdoem os autores) e, se dominar a língua inglesa, leia o guião e veja o filme, cujos links pode encontrar no final do artigo.

    INT. ESCRITÓRIO DE BAXTER – DIA

    Bud faz entrar Fran e é confrontado com um casal de estranhos a beijar-se num canto. Faz-lhes sinal para saírem e dirige-se à sua secretária.

    BUD

    Menina Kubelik, gostaria de ter a sua opinião sincera. Tenho isto na minha secretária há uma semana — custou-me quinze dólares — mas não consegui ganhar coragem suficiente para o usar…

    De debaixo da secretária tira uma caixa de chapéus e, da caixa, um chapéu de coco preto, que coloca na cabeça.

    BUD

    É aquilo a que chamam o modelo de executivo júnior. O que é que acha?

    Fran olha para ele sem expressão, absorta nos seus próprios pensamentos.

    BUD

    Acho que fiz asneira, não foi?

    FRAN

    (voltando a prestar atenção)

    Não… eu gosto.

    BUD

    A sério? Quer dizer que não teria vergonha de ser vista com alguém com um chapéu destes?

    FRAN

    Claro que não.

    BUD

    Talvez se o usasse um bocadinho mais para o lado…

    (ajustando o chapéu)

    é melhor assim?

    FRAN

    Muito melhor.

    BUD

    Bem, dado que não tem vergonha de ser vista comigo — que tal sairmos os três esta noite — você, eu e o chapéu, para darmos um passeio pela Quinta Avenida.

    FRAN

    Este é um dia mau para mim.

    BUD

    Eu percebo. O Natal, a família e tudo isso.

    FRAN

    É melhor voltar para o meu elevador. Não quero ser despedida.

    BUD

    Oh, não tem de te preocupar com isso. Eu tenho um pouco de influência nos Recursos Humanos. Conhece o Sr. Sheldrake?

    FRAN

    (cautelosamente)

    Porquê?

    BUD

    Ele e eu somos assim.

    (cruza os dedos)

    Até me enviou um postal de Natal. Quer ver?

    Pega num postal de Natal da sua secretária e mostra-o a Fran. É uma fotografia do clã Sheldrake agrupado à volta de uma elaborada árvore de Natal — o Sr. e a Sra. Sheldrake, os dois rapazes com uniformes militares e um grande caniche francês.

    Por baixo está escrito: “Saudações Festivas dos Sheldrake

    Emily, Jeff, Tommy, Jeff Jr. e Figaro.

    FRAN

    (estudando o cartão com mágoa)

    Ficou uma fotografia bonita.

    BUD

    Pensei que talvez pudesse falar por si ao Sr. Sheldrake e conseguir-lhe uma pequena promoção – gostaria de ser a arrancadora do elevador?

    FRAN

    Receio que haja muitas outras raparigas por aqui com mais antiguidade do que eu.

    BUD

    Não há problema. Porque é que não falamos sobre isso durante as férias – eu podia ligar-lhe e ir buscá-la para fazermos a grande estreia…

    (tocando na borda do chapéu de coco)

    — Tem a certeza que esta é a maneira correta de o usar?

    FRAN

    Acho que sim.

    BUD

    Não acha que está um pouco inclinado demais?

    Fran tira o seu estojo de maquilhagem do bolso da farda, abre-o e entrega-o a Bud.

    FRAN

    Veja aqui.

    BUD

    (examinando-se ao espelho)

    Afinal de contas, esta é uma empresa conservadora — não quero que as pessoas pensem que sou um artista–

    A sua voz esvai-se. Há algo de familiar no espelho rachado — e o padrão de flor-de-lis na caixa confirma a sua suspeita. Fran repara na expressão peculiar no seu rosto.

    FRAN

    O que é que se passa?

    BUD

    (com dificuldade)

    O espelho — está partido.

    FRAN

    Eu sei, eu sei. Gosto dele assim — faz-me parecer como me sinto.

    O telefone começa a tocar. Bud não o ouve. Fecha o estojo e entrega-o a Fran.

    FRAN

    O seu telefone.

    BUD

    Oh!

    (pega no telefone da secretária)

    Sim?

    (lança um olhar rápido a Fran)

    Só um minuto.

    (cobre o bocal; para Fran)

    Se não se importa – isto é um pouco pessoal.

    FRAN

    Tudo bem. Tenha um bom Natal.

    Sai, fechando a porta. Bud tira a mão do bocal.

    BUD

    (cada palavra dói)

    Sim, Sr. Sheldrake — não, não me esqueci — a árvore está montada e a mistura de Tom e Jerry está no frigorífico — sim, senhor — o mesmo para si.

    Desliga, fica ali parado por um momento, com o chapéu de coco ainda na cabeça, o barulho da festa a inundá-lo. Dirige-se lentamente para o cabide e pega no casaco — um chesterfield preto novo. Com o casaco sobre o braço, sai do escritório.

    Conclusão

    O Apartamento é uma das melhores comédias dramáticas jamais escritas, com personagens humanos e falíveis, voltas e reviravoltas, e uma extraordinária mestria no domínio do tom emocional das cenas, que se sucedem num malabarismo permanente entre o riso e a lágrima.

    É verdade que muito do seu conteúdo seria censurável nos nossos dias, inclusive na cena que selecionei. Um diretor dizer a uma subordinada coisas como “Pensei que talvez pudesse falar por si ao Sr. Sheldrake e conseguir-lhe uma pequena promoção”, no preciso momento em que está a convidá-la para sair, tem hoje um nome e pode dar direito a despedimento e prisão.

    Mas se soubermos abstrair-nos disso, um exercício necessário para poder desfrutar de muitas obras de arte antigas da literatura, teatro e cinema, O Apartamento é a garantia de duas horas passadas na companhia de mestres.

    Para conhecer algumas das dicas de escrita de Billy Wilder, leia este artigo.

    Veja aqui a cena no filme (incompleta):

    https://www.youtube.com/watch?v=hRHdRSCje3w

    E o filme completo pode ser visto aqui: https://ia801207.us.archive.org/16/items/1960-the-apartment/1960%20The%20Apartment.mp4

    Finalmente, se quiser ler o guião, encontra-o aqui: assets.scriptslug.com/live/pdf/scripts/the-apartment-1960.pdf

    Deixe um comentário

    O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

    This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.