Há filmes em que é difícil, ou mesmo impossível, escolher um diálogo mais representativo, e Casablanca é um deles. Mas acredito que muitas pessoas concordarão comigo em que o texto que selecionei para este artigo simboliza bem o espírito desta obra eterna.
Escrito por Julius J. Epstein, Phillip G. Epstein e Howard Koch a partir da peça de teatro original Everybody Comes to Rick’s de Murray Burnett e Joan Alison, Casablanca é, mais do que um filme de guerra, um drama romântico poderoso que embrulha uma astuciosa peça de propaganda bélica.
Digo propaganda porque, de certa forma, o arco de personagem do protagonista, Rick, é simbólico do próprio envolvimento dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial.
Rick, magistralmente interpretado pelo gigante Humphrey Bogart, começa por ser um americano cínico e materialista que (tal como os EUA) não tem qualquer interesse em envolver-se na grande guerra que grassa ao seu redor.
No entanto, ao reencontrar um amor antigo, a magnífica Ingrid Bergman no papel de Ilsa (representando o amor eterno dos americanos pela Europa…?) acaba por deitar todas as cautelas fora e mergulhar de cabeça no conflito, entregando-lhe duas cartas de salvo conduto (que são o MacGuffin desta estória).
Pelo meio cruzamo-nos com personagens inesquecíveis como Rick e Ilsa, o pianista Sam e o polícia francês Renault, que nos proporcionam inúmeras cenas recheadas de frases memoráveis, desde as famosas “Play it again, Sam” (que na verdade é só “Play it, Sam“) ou “Reúne os suspeitos do costume“, até ao derradeiro “Acho que isto é o começo de uma bela amizade“, passando, naturalmente, pelo “We’ll always have Paris/Teremos sempre Paris” da cena que escolhi para hoje.
Quando as filmagens de Casablanca começaram o guião ainda não estava completo, e muitas cenas foram escritas pouco antes de serem filmadas. Dessa forma, não há uma versão definitiva do guião, mas pode encontrar aqui uma das versões de rodagem mais significativas.
Note-se que se trata de um guião de rodagem, por isso inclui muitas indicações de câmara, planos, etc., que normalmente não têm lugar num guião normal, e especialmente num guião especulativo.
Sem mais demoras, segue-se a cena de hoje, que é o clímax emocional de Casablanca. A tradução é da minha responsabilidade.
PLANO AFASTADO – AEROPORTO – NOITE
No fundo, o farol no topo da torre de rádio faz girar lentamente a sua luz, abafado por um nevoeiro pesado. A meia distância, o contorno do avião de transporte distingue-se mal. Perto da porta aberta está um pequeno grupo de pessoas, malas, etc.
Um carro pára perto da porta aberta do hangar, em primeiro plano.
PLANO MÉDIO – UM ORDENANÇA FARDADO
está ao telefone perto da porta do hangar.
ORDENANÇA
Olá, torre de rádio… o avião para Lisboa descola em dez minutos… Obrigado.
Desliga, atravessa em direção ao carro.
PLANO MÉDIO – NO CARRO
O Ordenança saúda com rigor ao reconhecer Renault a descer do carro. Este último é seguido de perto por Rick, mão no bolso, ainda cobrindo Renault com uma arma. Laszlo e Ilsa saem da parte de trás do carro.
RICK
(indicando o Ordenança)
Louis, faz com que o teu homem acompanhe o Sr. Laszlo e cuide da bagagem dele.
RENAULT
(com uma vénia irónica)
Certamente, Ricky. Tudo o que disseres.
(para o Ordenança)
Encontre a bagagem do Sr. Laszlo e coloque-a no avião.
ORDENANÇA
Sim, senhor. Por aqui, por favor.
Renault acena bruscamente para o Ordenança, que escolta Laszlo na direção do avião. Rick tira as Cartas de Trânsito do bolso e entrega-as a Renault.
RICK
Se não te importas, Louis, preenche os nomes.
(sorri)
Isso tornará tudo ainda mais oficial.
RENAULT
Pensaste em tudo.
Tira a caneta, espalha os papéis no para-lamas do carro.
RICK
(calmamente)
E os nomes são Sr. e Sra. Victor Laszlo.
Tanto Ilsa como Renault olham para Rick com espanto.
ILSA
Mas porquê o meu nome, Richard?
RICK
(ainda a olhar para Renault)
Porque vais entrar nesse avião.
ILSA
(atordoada)
Mas eu… Eu não entendo. E tu?
RICK
Vou ficar aqui com ele até o avião decolar em segurança.
ILSA
(percebendo por fim a intenção de Rick)
Não, Richard, não!… O que aconteceu contigo? Ontem à noite dissemos —
RICK
Ontem à noite dissemos muitas coisas. Disseste que eu deveria pensar por nós dois. Bem, tenho pensado muito desde então e tudo se resume a uma coisa. Vais entrar nesse avião com o Victor, onde pertences.
ILSA
(protestando)
Mas Richard, não. Eu, eu —
RICK
Agora tens que me ouvir. Tens ideia do que te espera se ficares aqui? Nove em dez hipóteses, vamos acabar num campo de concentração. Não é verdade, Louis?
RENAULT
(enquanto termina de assinar os papéis)
Receio que o Major Strasser insista nisso…
CORTA PARA:
PLANO LONGO – CARRO DE STRASSER
– acelerando em direção ao aeroporto.
CORTA DE VOLTA PARA:
ILSA, RICK E RENAULT
– enquanto Renault conclui…
ILSA
(virando-se para Rick)
Estás a dizer isso apenas para me fazeres ir.
RICK
Digo isso porque é verdade. Dentro de nós, ambos sabemos que o teu lugar é com o Victor. Fazes parte do trabalho dele. É o que o mantém em movimento. Se esse avião decolar e não estiveres com ele, vais arrepender-te.
ILSA
Não.
RICK
Talvez não hoje, talvez não amanhã, mas em breve, e pelo resto da tua vida.
Por um momento ela não consegue responder – é assim honesta. Depois olha para ele e os seus olhos estão marejados.
ILSA
Mas e nós?
RICK
Teremos sempre Paris. Não a tínhamos – tínhamo-la perdido – até que chegaste a Casablanca. Recuperamos isso ontem à noite.
ILSA
E eu disse que nunca te deixaria!
RICK
(segurando-a pelos ombros)
E nunca deixarás. Mas tenho um trabalho a fazer também. Para onde vou não podes seguir – o que tenho que fazer – não podes fazer parte. Não sou bom em ser nobre, Ilsa – Mas não é preciso muito para ver que os problemas de três pequenas pessoas não significam nada neste mundo louco. Um dia vais entender isso. Não agora. Um brinde a ti, miúda.
(…)
Pode ver a cena aqui ou, melhor ainda, procurar o filme nalguma plataforma e vê-lo (ou revê-lo) integralmente: