Avançar para o conteúdo

Veja como é fácil escrever cenas mais vivas

    Todos nós já escrevemos uma cena assim: chata, plana, sem vida nem interesse. Uma cena que parece um peso amarrado aos pés do nosso guião, impedindo-o de avançar. Mas se soubermos reconhecer os sinais de perigo podemos melhorá-la em dois ou três passos simples. 

    Será que a cena faz falta?

    A primeira coisa a ver é se a cena faz mesmo falta no nosso guião. Muitas vezes ele parece estar a mais porque, efectivamente, o está. Se a cena não faz avançar a estória, não fornece ao espectador uma informação relevante, e não oferece uma nova perspectiva sobre os nossos personagens (o ideal é fazer mais do que uma destas coisas ao mesmo tempo), então é provável que ela não faça falta ao guião.

    Veja o que se perde se a cortar. Uma boa maneira de fazer isto é tentar descrever a sua função no enredo numa única frase curta. Se não o conseguir, é porque provavelmente ela não está a ajudar a estória a avançar. Nesse caso, nem hesite – qualquer bom diálogo ou elemento interessante que ela tenha pode sempre ser aproveitado noutra cena mais importante.

    Como mudar a dinâmica da cena

    Se fez um bom planeamento da sua estória, em termos de estrutura e enredo,  não deve ser difícil saber qual a função da sua cena. A estória já estará devidamente estruturada em actos; dentro destes já terá identificado as diversas sequências; e, finalmente, já terá definido quais as cenas que compõem cada sequência.

    Uma cena é uma mini-estória, com princípio, meio e fim. E, como em qualquer estória, não podem faltar dois elementos: conflito e transformação. A sua primeira tarefa será, assim, identificar qual a transformação que a cena deve operar na estória: mudança no rumo do enredo, inversão do estado emocional dos personagens, revelação de informações importantes, etc.

    Depois de decididas quais são essas transformações tem de analisar a essência da relação dos elementos em cena e identificar as possibilidades de conflito presentes. Se o personagem A quer algo, o personagem B  quer algo diferente; se o personagem A precisa de uma informação, o personagem B tem de estar reticente em dá-la; se o personagem A espera uma determinada coisa, acontece outra completamente diferente (ou acontece o que ele esperava mas as consequências são inesperadas); etc.

    Procure explorar todas essas possibilidades de conflito, sem medo de exagerar. É mais fácil suavizar uma cena excessiva do que dramatizar uma cena morna. Explore também as variações do fluxo emocional da cena – se o personagem A começa por cima, imagine como levar o personagem B a dar a volta, para depois fazer novamente o mesmo ao A, até atingir a situação final da cena. Fuja como o diabo da cruz das cenas planas e previsíveis; as surpresas são as suas melhores amigas. 

    Planeie a cena antes de escrever

    O ideal é que, no fim da cena, o espectador sinta que a estória progrediu mais um passo. Para isso tem de a planear antes de meter mãos à escrita.

    Para isso, agarre num bloco de notas e esquematize resumidamente as transformações que quer operar na cena.  Anote os seguintes pontos:

    • o que é que cada personagem quer no início;
    • o que é que vai obter no final;
    • em que estado de espírito cada personagem começa a cena;
    • e em que estado de espírito – diferente – a termina;
    • quais os principais compassos da cena, ou seja, as pequenas revelações e variações que ocorrem dentro da cena;
    • e, finalmente, o nível de tensão da cena comparativamente com as anteriores e as que se lhe seguem.

    Um exemplo

    Fui buscar uma cena antiga, ao primeiro guião que escrevi e foi produzido, o do telefilme da SIC, "Mustang". Na cena anterior os dois irmãos, protagonistas, surpreenderam a mãe com um telemóvel (o filme já tem uns anos). Nesta cena ela expressa as suas reticências enquanto eles tentam convencê-la a aceitar.

     [fountain]

    INT. COZINHA – MAIS TARDE

    TRÊS TELEMÓVEIS em cima da mesa. Lena está sentada com os filhos, olhando para os aparelhos.

    LENA
    Presumo que foi o vosso pai que ofereceu estas coisas.

    RAFA
    Só os nossos. O teu comprámos nós. É um presente.

    Lena agarra nas mãos dos filhos. Está enervada, falando num tom de quase desespero.

    LENA
    Para que é que queremos telemóveis. Temos vivido sempre tão bem sem telemóveis…

    PEPE
    Toda a gente tem telemóveis, mãe. Até a mulher do lixo tem um.

    RAFA
    Na tua empresa toda a gente tem.

    LENA
    E o dinheirão que se gasta com eles. Não somos ricos, sabiam?

    RAFA
    Eu pago as contas todas, mãe. Desde que não te ponhas à conversa com as tuas amigas.

    PEPE
    Ou com o teu namorado.

    Lena levanta-se e vira as costas aos filhos, tentando recompor-se.

    LENA
    Há uma coisa que eu tenho de dizer-vos acerca do vosso pai.
    (pausa)
    Ele era um homem violento. Um bruto.
    (pausa)
    Batia-nos a todos, Rafa. A ti, a mim… Até ao bebé. Durante algum tempo eu suportei tudo. Depois fartei-me. Foi por isso que ele saiu de casa.

    RAFA
    Nós sabemos, mãe.

    PEPE
    Ele contou-nos.

    Lena vira-se, genuinamente surpreendida.

    LENA
    Contou-vos?

    PEPE
    Tudo. Contou-nos isso tudo. Ele está diferente, mãe, acredita. Está arrependido.

    RAFA
    É um homem muito só, mãe.

    LENA
    Tem o que merece.

    RAFA
    Devias falar com ele.

    PEPE
    Nem que fosse pelo telemóvel…

     [/fountain]

    Vejamos então quais os objectivos, aspectos emocionais, conflitos e transformações operados nesta cena:

    • objectivo dos irmãos – querem que a mãe aceite o telemóvel (e indirectamente o pai); conseguem-no;
    • objectivo da mãe – a mãe quer afastá-los dos telemóveis (e do pai), mas não consegue;
    • estado de espírito dos irmãos –  começam a cena esperançosos, e terminam vitoriosos;
    • estado de espírito da mãe – começa nervosa ("quase deseperada") e termina surpreendida;
    • compassos da cena – a mãe não quer o telemóvel porque vê nele uma influência do ex-marido sobre os filhos; começa por tentar usar argumentos racionais (dinheiro, necessidade, etc) mas quando vê que não funcionam, resolve revelar aos filhos as características violentas do pai; os filhos surpreendem-na ao dizer-lhe que já o sabem, pois o próprio pai lhes revelou isso, o que é sinal da sua transformação.
    • nível de tensão dramática – a cena tem um nível emocional razoavelmente elevado, e vem entre duas cenas mais curtas e mais leves.

    Assim, a cena tem uma dinâmica forte e imprime uma transformação importante no rumo da estória. Começa com a mãe de Rafa e Pepe completamete renitente a qualquer aproximação do ex-marido, e termina com uma porta aberta para essa possibilidade de aproximação.

    Deixe um comentário

    O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

    Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.