Uma página de guião é escrita segundo um formato muito particular, que por vezes baralha os leitores menos habituados. Há razões para isso, e já escrevi bastante sobre esse tema antes. Por exemplo, aqui, aqui, aqui e aqui.
A questão que gostaria de abordar hoje, contudo, é outra.
Vamos analisar não o formato técnico de uma página de guião mas antes a sua aparência – a sua “impressão digital”, se assim podemos dizer.
A impressão digital de uma página de guião
Um exercício que gosto de fazer quando estou a ler um guião é semicerrar os olhos, para me abstrair das palavras e ver apenas a ocupação das páginas: o ritmo, a cadência, a densidade, a mancha da escrita no papel.
Para partilhar esse exercício fiz uma experiência: copiei páginas de 21 guiões, tanto de cinema como de televisão, de estilos, épocas e géneros diferentes.
O processo de seleção foi completamente aleatório. Agarrei numa pasta onde tinha separado alguns guiões e escolhi os primeiros 21. Tirei capturas de ecrã das suas páginas nº 21 e combinei-as num único documento.
Para tornar ainda mais abstrata a análise inverti as cores, de forma a tornar o fundo negro com as letras a branco, e desfoquei as letras. O resultado é um conjunto de 21 manchas que pode ver a seguir (Clique aqui ou na própria imagem para ver o documento em tamanho real).
![Infografismo-aparencia do guiao](https://joaonunes.com/wp-content/uploads/Infografismo-aparencia-do-guiao.jpg)
Que conclusões podemos tirar da análise destas “manchas” de texto? (Nota: algumas páginas têm o texto inclinado ou manchas de furos porque foram mal digitalizadas a partir de cópias impressas.):
- A “impressão digital” de um guião é clara e distintiva – as suas páginas não se confundem com páginas de romances nem de peças de teatro.
- São significativamente parecidas entre si.
- A sua característica principal é a predominância do espaço vazio e a alternância entre as linhas mais longas (cabeçalhos e descrições) e as linhas mais curtas (diálogos).
- Há apenas duas excepções, com duas páginas completamente cheias de texto de descrição.
- Pelo contrário, não há nenhuma página cheia apenas com diálogo.
- Os parágrafos de descrição são maioritariamente curtos, com duas ou três linhas apenas – são raros os que têm mais de quatro linhas.
- Os diálogos de cada personagem têm um ritmo mais rico e variado. Poucos têm mais do que quatro ou cinco linhas, a maioria fica-se pelas duas ou três, com bastante alternância.
- Mais importante ainda: são poucos os casos em que há mais do que quatro trocas de diálogo sem haver um ou dois parágrafos de descrição a interromper. Provavelmente nenhuma destas cenas é com pessoas sentadas numa sala a conversar.
- Poucas páginas têm indicações de transições (linhas curtas encostadas ao lado direito) ou de planos (linhas curtas encostadas à esquerda). Como já referi antes, estas indicações estão a sair de moda e devem ser usadas com muita moderação.
- A indicação dos títulos e outra metainformação no topo da página varia muito. Só os números de página estão presentes em quase todas as páginas, no canto superior direito.
Olhe agora para as páginas do seu guião, semicerrando os olhos.
- A “mancha” que está a ver é semelhante à dos exemplos na imagem?
- Os parágrafos de descrição são curtos e incisivos ou estendem-se indefinidamente?
- Os diálogos têm um ritmo visual interessante ou são pesados e maçudos?
- O espaço vazio predomina ou a página parece pesada e a abarrotar de informação?
Se a “impressão digital” do seu guião não pertence à mesma espécie dos exemplos aqui reunidos, está na hora de mudar alguma coisa.
Não assuste logo os potenciais leitores com a primeira mirada que derem às suas páginas.
(Pergunta-bónus ;) Alguém consegue descobrir qual destas páginas é do guião (roteiro) do filme Cidade de Deus?)
Respondendo a sua última pergunta, não posso imaginar qual seja o roteiro de Cidade de Deus. Qual seria e por que ?
Também não sei qual é. Depois de desfocar a imagem perdi a ordem deles ;)
Acho que o que isso quer dizer é que não importa o tipo de filme ou a língua em que está escrito, que a impressão digital continua a ser semelhante.
Interessante… À partida, diria que os diálogos em português
(especialmente o português de Portugal) teriam tendência para ocupar
mais linhas. Agora já não estou tão certo disso. :-/
Quanto à comparação: curiosamente, a página 21 de um dos meus guiões
é praticamente a única de entre os guiões que escrevi que constitui uma anomalia em relação à amostra que o João forneceu: tem apenas uma linha de descrição, o resto são diálogos entre três personagens, sendo que nenhum deles excede as três linhas.
A escolha da página 21 foi aleatória. Decidi fazer com 21 guiões porque 3 colunas de 7 imagens era adequado para a imagem que eu queria. E como o nº 21 surgiu assim, escolhi-o para a amostra. As duas páginas que sairam da “média” eram seguidas ou antecedidas por páginas “normais”, mas decidi manter o critério.
Não é grave que num guião algumas páginas tenham um “impressão digital” diferente. Pode ser complicado se todas tiverem.
Mesmo assim, como escrevi hoje numa resposta direta a um leitor, “É claro que se o seu guião for muito bom isso não interessa para nada. Se os seus diálogos fizerem avançar a estória e prenderem o espectador, criarem conflito, surpresa, tensão dramática permanentes – se os seus diálogos forem brilhantes os leitores não vão estar nem aí para a “impressão digital” do guião. Se um guião é bom, é bom. O resto é fantasia.“
É por isso que Tarantino escreve num “papel de pão” e é considerado um dos melhores da atualidade. Sou fã desse cara, pela sua escrita ágil e voraz. E acredite não gosto de filme violento. Mas deixar de admirá-lo por causa disso seria ignorância da minha parte.
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