Ontem, enquanto explorava alguns caixotes com livros e documentos antigos na garagem de casa dos meus pais, descobri uma relíquia que já tinha dado como perdida: a edição de Dezembro de 1996 da revista Fortuna. Aí, na secção dedicada ao Natal, reencontrei alguns contos curtos que os editores encomendaram a três redatores publicitários com algum nome na época: a Catarina Soromenho, o Jaime Mourão Ferreira e eu próprio.
Nessa altura eu era diretor criativo na agência de publicidade EuroRSCG e ainda não me tinha iniciado nas lides de guionista, mas o meu estilo de escrita de ficção parece bastante semelhante ao de hoje. Já o meu sentido de humor, aparentemente, tendia um pouco mais para o negro.
Decidi, por isso, republicar o conto aqui no blogue, introduzindo apenas alguns ajustes menores e correções de erros.
A CONSOADA
por João Nunes
A culpa foi do Treze-treze. Era um tipo engraçado, parecido com um cómico famoso, já não me lembro qual. Quando começava a desbobinar ninguém parava de rir. O único problema dele era que falava mais depressa do que pensava. Nós chamávamos-lhe o Treze-tretas. “Nós” era o Rodas, o Charuto, o Pessanha e eu – com o Tretas formávamos a esquadra mais atrevida do 3° pelotão, o pelotão mais atrevido da 4ª companhia, a companhia mais atrevida… estão a ver o estilo.
Estávamos juntos ia para três anos, desde o início da guerra. O único que tinha feito a recruta em tempo de paz era eu, daí ser o Cabo. Os outros eram todos mal-amanhados – magalas treinados à pressa e atirados para a trincheira ainda com as fraldas das camisas desentaladas e os atacadores por apertar. Mas éramos uma boa equipa, muito unida. Quando saíamos à noite, para patrulhar as barreiras da zona neutra, ali para as Avenidas Novas, chegava a ter orgulho da nossa movimentação – silenciosos, sincronizados, muito profissionais.
O Pessanha não era boa peça – a alcunha dele era o “Peçonha”, mas ninguém lho dizia na cara. No entanto foi quem teve mais visão, nessa noite, quando discutimos a ideia do Treze-treze:
– Acho uma estupidez! É a ideia mais parva que já tiveste, e olha que não foram poucas.
– Estúpido é o nosso Tenente, e comanda um pelotão. Porque é que é parva, a minha ideia? Amanhã é Natal ou não é?
– É – concedi eu.
– Vamos sair de patrulha à noite, ou não vamos?
Ninguém respondeu e o Treze-treze continuou.
– É noite de Natal, logo não há tiros. Não há tiros, não há sustos. Não há sustos – podemos fazer uma consoada!
Eu não percebi muito bem o raciocínio, mas o Charuto atalhou:
– Uma jantarada era muito fixe!
– Para uma jantarada é preciso comida, ó estúpido! Vocês estão mesmo bem um para o outro…
Era o Pessanha, simpático como sempre. Mas o Tretas já tinha a resposta na ponta da língua:
– É, sim senhor. E eu sei onde é que se arranja comida, e da boa, e sem dinheiro!
– Vamos arranjar o quê? perguntou o Rodas, acabadinho de chegar das latrinas. – Estão a falar de quê?
Ninguém lhe ligou. A nossa curiosidade já estava aguçada. Comida. Para uma jantarada. Quem é que temos de matar?
– Isto que eu vos vou dizer é confidencial. Vem de uma fonte segura que eu não posso revelar. Do outro lado, estão a perceber. Vocês lembram-se da última vez que fomos em patrulha para os lados do Jardim Zoológico? Aquela zona está toda minada, não se pode andar por lá. Mas… o meu informador jura a pés juntos que há montes de animais vivos no Zoo, e um caminho seguro para lá entrar. É melhor que ir ao supermercado – chega-se, escolhe-se e avia-se um churrasco num cantinho recatado.
– Isso é impossível, Tretas. Desta vez ultrapassaste-te pela direita. Animais vivos, com que então? E quem é que os alimenta? Com o quê? Estamos numa guerra, porra! Ainda não perceberam isso? Não contem comigo para uma parvoíce dessas!
Como eu já disse, éramos uma equipe muito unida. Mas fomos a votos e o Pessanha perdeu.
Saímos para a patrulha por volta das 11 da noite, como de costume. Era uma missão de rotina e, sendo noite de Natal, ninguém esperava surpresas. Até à Praça de Espanha era zona nossa e podíamos ir calmamente de jeep, na converseta. Só o Rodas seguia mudo, porque levava muito a sério o seu papel de motorista e além disso era calado por natureza. Eu escolhia sempre o lugar do morto e normalmente também não falava muito. Os três estarolas instalaram-se nos bancos de trás, com as G-3 entaladas nos joelhos. O Treze-treze, sozinho num banco; os outros dois – a audiência – em frente dele.
– Eu preparo o frango como vocês nem imaginam. E se não for frango, se for abutre, ou pinguim, ou outra cena qualquer, também marcha. Se tem asas, voa. Se voa, é para comer.
Numa patrulha normal, chegados à praça de Espanha desmontávamos e seguíamos a pé. Por norma virávamos para a direita e íamos bater a Duque de Ávila até à Avenida de Roma. A Cinco de Outubro era perigosa, com fama de atrair os atiradores solitários, mas o Campo Pequeno é que me metia respeito. Aquilo era demasiado grande e descoberto para meu gosto.
Depois inflectíamos para a Alameda, subíamos até à Defensores de Chaves e ficávamos a fazer tempo no edifício da Casa da Moeda, no meio das ruínas. Quando começava a raiar o sol, regressávamos ao jeep, por um caminho mais seguro e menos cansativo.
Nessa noite, e porque o plano assim o exigia, virámos para a esquerda e ladeámos o que restava do Hospital do Cancro. Aproximámo-nos do Jardim Zoológico pelo Sul e parámos debaixo dos pilares de um viaduto meio destruído. Pela planta que o informador do Treze-treze tinha desenhado o acesso seguro era pela esquerda. Haveria aí uma antiga entrada secundária, agora vedada e minada. Seguindo mais 100 metros encontraríamos o gradeamento rebentado e o começo de um trilho que nos levaria diretamente aos animais e à saciedade. O pior que nos poderia acontecer era encontrar uma patrulha separatista que também fosse à procura de jantar. Mas era Natal, ninguém se iria aleijar na Noite Santa.
A entrada lá estava como o Treze-treze tinha prometido. E logo a seguir o atalho, com jeito de ser pisado regularmente. As plantas que o ladeavam eram viçosas e eu encontrei algumas hastes partidas há pouco tempo. Resolvemos seguir.
O Tretas ia à frente, com o mapa na mão. Eu acompanhava-o de perto, como era meu dever. O Charuto trazia o rádio alguns metros atrás, escoltado pelo Rodas e pelo Pessanha, já não me lembro em que ordem. Não interessa – o que conta é que o trilho era mesmo seguro e conduzia a uma zona com jaulas e nessas jaulas havia animais e alguns desses animais tinham um ar comestível à brava.
Não conseguimos conter a nossa alegria e por pouco não nos pusemos todos a dançar. Todos – menos o “Peçonha”, que continuava cético e cada vez mais preocupado. Agora que penso nisso acho que era ele quem vinha a fechar a patrulha, o mais longe possível do Treze-treze.
Escolhemos, para começar, um passarão com ar bastante tenro, ao que se deveria suceder uma espécie de veado pequeno, gordinho e apetitoso. O Charuto ainda nos tentou convencer a apanhar um canguru, mas quando começou a explicar as suas razões (que ainda hoje me deixam curioso) fomos interrompidos por uma voz frágil, saída da escuridão que nos rodeava:
– Se querem jantar, rapazes, ao menos deixem-me ser eu a convidar….
Acabámos por não comer nem o passarão, nem o veado, e muito menos o canguru. O nosso anfitrião já tinha o jantar ao lume e era, imagine-se, um belo peru, embebedado a preceito e cozinhado como já nem nos lembrávamos ser possível. Mas deixem-me recuar um pouco.
Quando ouvimos a voz do homem atirámo-nos de borco, com as G-3 prontas a esgalhar. Tínhamos sido apanhados de surpresa, feitos uns maçaricos, e agora íamos morrer ali mesmo, sem glória, de barriga vazia à excepção de alguns gramas de chumbo.
Mas não era uma emboscada – do negrume apareceu-nos apenas um velho seco, com a cara escalavrada de bexigas, um fato cinzento escuro e uma bengala de cana.
– Levantem-se, rapazes, estou sozinho. Sou só eu e os meus bichinhos.
Uma hora depois, com os guardanapos à volta dos pescoços e os pratos cheios a transbordar, já se nos tinham esgotado as perguntas. Sabíamos que o ancião era um dos antigos veterinários do Zoo de Lisboa; que tinha resolvido continuar a picar o ponto mesmo depois da guerra civil ter expulso toda a gente da capital; que não lhe sobrava família próxima ou afastada e que os animais faziam as vezes de irmãos, primos, sobrinhos e demais parentes; que mesmo com os seus cuidados já não restavam muitos exemplares no recinto e os que iam sobrevivendo padeciam de doenças diversas; que as minas tinham mantido aquele santuário longe dos olhos e gulas dos combatentes; e que era um enorme prazer ter-nos para a Consoada.
O peru estava excelente, pelo menos para os nossos bandulhos condicionados por anos de comida de rancho e meses de rações de combate. E o vinho também era algo excepcional – um Borba soberbo que o próprio Doutor confessou ter guardado apenas para ocasiões especiais.
Comemos e bebemos com avidez. Até o Pessanha, que depois das primeiras garfadas tinha deixado tombar as defesas e se rendera de faca e garfo aos encantos do nosso novo amigo. Mesmo assim foi ele quem fez a última pergunta da noite, e uma bem pertinente por sinal:
– Mas ó Doutor, diga lá uma coisa: como é que você alimenta o raio dos bichos?
Não chegámos a ouvir a resposta porque o Borba fez o seu efeito. Era uma reserva especial, como garantira o bom doutor…
O Treze-treze foi o primeiro a acordar, com a boca amarga e uma forte dor de cabeça. Estava abandonado numa jaula escura, atado de pés e mãos. Sentiu um cheiro acre e intenso e a última coisa que ouviu foi um ronronar suave, quase meigo. O Rodas e o Charuto não chegaram a dar por nada – e ainda bem. Suponho que foram parar ao Reptilário. O Pessanha, desconheço o seu destino. Só espero que os seus maus fígados tenham chegado para envenenar alguns bichanos.
Quanto a mim, tive sorte. Os separatistas quebraram o cessar-fogo do Natal de 97 e bombardearam as nossas bases junto às docas. Como ainda são mais incompetentes do que nós alguns petardos foram cair em Sete-Rios.
Consegui fugir por um buraco que fizeram, pequeno demais para o urso polar.