Já acompanho o percurso do guionista e guru de escrita brasileiro Doc Comparato desde os anos 90. Em 2019 tive o prazer de conhecê-lo pessoalmente, num jantar promovido pela Academia Portuguesa de Cinema. É, pois, com grande satisfação que começo este ano aqui no site ouvindo-o falar do seu trabalho, dos seus livros, do futuro da nossa profissão e até da sua amizade com Gabriel Garcia Márquez.
Doc Comparato é um médico, dramaturgo, roteirista e escritor que nasceu no Rio de Janeiro, Brasil, e se destacou nesse país e internacionalmente como autor e professor. A sua carreira começou nos anos 70 e os seus trabalhos abrangem o teatro, o cinema e a televisão tanto no Brasil como no exterior. Foi fundador da Casa de Criação da Rede Globo.
Possui sete prémios internacionais, destacando-se a medalha de ouro do New York Films and Television Festival, e o seu trabalho de co-autoria com o Prémio Nobel Gabriel García Márquez na minissérie Me Alugo para Sonhar.
Também assinou as primeiras séries e minisséries da TV brasileira, que se tornaram clássicos. Como professor e teórico em dramaturgia, escreveu o livro Da Criação ao Roteiro, pioneiro desta matéria em vários continentes. O seu último cargo universitário foi em 2004, como professor de Roteiro da Escola de Cinema de Berlim.
Sem mais demoras, sigo para a entrevista, que foi ligeiramente editada para maior clareza.
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“Se eu não escrevo alguma coisa num dia, o dia já não presta.“
João Nunes: Olá Doc, em primeiro lugar, muito obrigado por esta oportunidade de estarmos aqui a ter esta conversa. O seu livro Da criação ao roteiro foi a minha introdução à escrita audiovisual, ainda nos anos 90, numa edição, penso que era da Pergaminho. Portanto, muitos dos conceitos que depois apliquei na escrita, comecei a aprendê-los com esse livro. Mais recentemente, em 2019, estive num workshop que o Doc deu no Festival A 4 Mãos, em Cascais, um festival da Academia de Cinema. Como pode ver, o Doc tem marcado a minha carreira, o meu processo, durante muito tempo. Fale-me um pouco dos seus livros.
Doc Comparato: Antes de mais nada agradeço esse elogio de ter solidificado ou extraído alguma coisa que já estava dentro de você.
JN: Não precisa, foi uma grande ajuda mesmo. Abriu-me muitas portas e mostrou-me muitas coisas de que eu não fazia ideia.
Doc: Eu tenho o livro da década de 80, depois esse livro que você mostrou e tenho ainda outro, que é do terceiro milénio. Esse já tem realidade virtual, tem games, tem web series, tem streaming, entendeu? E inteligência artificial, que é a maior novidade. E já saiu na Espanha, em um livro espanhol.
JN: Tenho mesmo que consultar esse livro, parece ser uma bíblia autêntica.
Doc: É uma bíblia, é uma bíblia. Você pode baixar livremente. Já não é ap enas um livro teórico-prático, passou a ser um livro de consulta. Se você precisar consultar alguma coisa, vai lá no livro e já consulta lá o que eu disse sobre o tema. Inclusive, é o único livro que eu conheço que mostra como é que se faz um roteiro para realidade virtual. E mostra mesmo um roteiro, como é que é.
E é muito moderno, porque nós estamos vivendo aqui, atualmente, a morte da televisão, dos canais a cabo, como nós conhecemos. A nova geração tem que tomar conta disso, porque os streamers já estão dando notícias, já estão dando eventos ao vivo, jogos de futebol, tudo o que você imagina.
Então, essas mudanças vão continuar. Estamos vivendo uma enorme curva, uma espiral de comunicação, que a gente não sabe bem onde é que vai chegar.
Então, está ficando um outro mundo. Que não é mais uma aldeia global, é feita de tribos internacionais. As tribos do Brasil daqui, as tribos dos Estados Unidos, etc.
JN: Além de ser professor e de ensinar as outras pessoas a escrever, o Doc tem sido sempre um roteirista ativo e muito respeitado. Como é que foi manter em paralelo essas duas atividades?
Doc: Eu ainda era muito jovem quando comecei, e tinha muita disposição. E eu, enfim, já era um jovem conhecido, já tinha feito Malu, Plantão de Polícia, já estava escrevendo os especiais da Globo.
Aí abriu, perto da minha casa, uma casa de criação, onde tinha formação para roteiro, para ator, para diretor, aí me convidaram, você não quer dar aula para roteirista? Tá, dou. Como eu sempre fui autodidata, eu fiz todo o processo para fazer as minhas aulas.
E para você dar aula, você precisa estudar. Estudando, você aprende. Fazendo, você aprende. Você gera dúvidas, você vai se perguntar se tem uma saída prática, tem uma saída teórica, entendeu? Não tem, você faz, você tem que achar. Acho que, para dar aula, você tem que preparar aulas, para preparar aulas, você tem que estudar. Falando de personagem, tem que estudar, tem que fazer um corpo enorme de investigação. Então, você estuda para dar aula, e a aula você já vai assimilando no seu trabalho diário. Então, é uma coisa interessante.
Só que esse processo não foi um processo do dia para a noite. As pessoas pensam que foi uma coisa do dia para a noite. Não foi do dia para a noite.
Eu era médico, trabalhava num hospital , e dava dois plantões e fazia o trabalho de roteirista, porque é uma profissão muito instável, até hoje. Nós não temos uma SPA no Brasil. Nós não temos uma entidade capaz de defender os nossos direitos, sendo uma espécie de sindicato, recolher os direitos autorais, enfim. Não existe isso no Brasil, até hoje, infelizmente.
Então, esse processo de ser autor e mentor evoluiu mais ou menos em conjunto. Você não pode tirar uma coisa da outra; uma nutre a outra.
Então, esse processo de ser autor e mentor evoluiu mais ou menos em conjunto. Você não pode tirar uma coisa da outra; uma nutre a outra. – Doc Comparato
JN: Eu tenho também essa experiência, mas há muitos autores que nunca tiveram vontade de ensinar. Nessas duas vertentes, quem é que o mais marcou durante estes anos todos, como autor e como professor?
Doc: Veja bem, eu fui diretor, fundador do Master de Roteiro da Universidade Autónoma de Barcelona, por três anos. Eu chamei todos os mais importantes roteiristas do mundo para dar aulas. Jean-Claude Carriére dava seminário lá, porque a universidade era bastante rica e eu estava em uma posição muito boa.
Então, eu aproveitava os professores que queria conhecer, de quem eu conhecia os trabalhos. Isso foi muito marcante na minha vida.
JN: Em que período foi isso?
Doc: Isso foi nos anos 90, nos anos 80. Tenho pouca memória para números e datas, não guardo nada. Possivelmente, essa é uma razão porque eu acabo um trabalho e o jogo fora.
JN: Consegue fazer isso? Terminar um trabalho e esquecer?
Doc: Eu acho que consigo. Eu consigo esquecer bastante das coisas que escrevi, e isso cria mais espaço para as ideias novas.
Mas voltando ao tema das influências, eu posso dizer que, desde o cinema italiano até o cinema francês e americano, todos eles são mentores. Eu também sempre fui muito ao cinema, leio muitos livros. Em garoto eu morava perto dum cinema, parecia até o Cine Paradiso, e já era conhecido. Era garoto e via todos os filmes. Antigamente, tinha matinê, eu ia passar o dia ali dentro.
Isso me marcou muito. Eu já tinha essa vontade de ser autor, mas acabei sendo médico. Mas isso também foi bom porque conheci o ser humano mais de perto, profundamente. Profundamente nunca, mas mais de perto, o que já é um horror. Então, fui juntando essas coisas.
Mas eu estava falando para você uma coisa muito interessante. As pessoas acham que foi do dia para a noite, não foi do dia para a noite. Eu trabalhava como médico dois dias por semana e em três dias trabalhava como guionista. Uma coisa segurava a outra.
Até que, um dia, eu estava de plantão, telefonou o Bruno Barreto me convidando para adaptar O Beijo no Asfalto. Ele falou assim, “Estou ligando para o hospital, você está internado?”
Eu falei, “Não, eu sou plantonista, chefe do plantão”.
E ele falou, “Seu Comparato você diz que é escritor, mas você é médico”. Essa frase destruiu o meu mundo e resolvi pedir demissão do emprego de médico.
JN: Foi um risco.
Doc: Foi um risco, como diz o Bergman, uma flechada, um mergulho no escuro.
Depois, outra coisa, sobre os meus livros. Eles estão disponíveis no site Colmeah. Tem alguns livros da década de 80, tem esse que você comprou e até o último bem recente. Então, eu sou um autor que cobre 50 anos de audiovisual. Eu cubro desde a televisão a preto e branco, analógica, até…
JN: Hoje, ao streaming.
Doc: Então, você, no livro, tem uma visão completa do que foi a história teórico-prática nesse período de 40, 50 anos. E mais ainda, não só está em língua portuguesa, mas está em francês, alguns em inglês, italiano, outros em alemão.
Eu vivi muito tempo em Portugal, e, na verdade, trabalhei pela Europa inteira, através de uma base em Sintra. Então, posso dizer que tenho uma experiência muito grande nesse mundo audiovisual.
JN: Sem dúvida.
Doc: Foi um trajeto muito reconfortante, foi muito intenso. E, agora, as pessoas têm que saber que eu não vou levar esses livros para a tumba. Abri mão dos direitos. Você vai lá no site, entra, e baixa o livro.
JN: Eu vou divulgar, claro, porque isso é importantíssimo para as novas gerações.
Doc: E tudo isso mudou a minha percepção. Você vê que eu, como teórico, estou mudando. Já pensei assim, agora penso assim. E isso foi interessante.
É bom até você avisar que no site Colmeah você encontra os livros todos em vários idiomas. Você tem, em cima, a bandeira que abre em português, depois vai para inglês, francês, espanhol.
Tudo isso aconteceu porque eu liberei os livros, porque eu tinha um contrato de direitos do livro. Mas depois veio a pandemia e com a pandemia não tinha como viajar para dar aulas. Então, falei para o meu editor na Espanha, “O senhor tinha que me dar passagem, estadia, conferências, imprensa, vamos fazer diferente, vamos soltar o livro. Porque a gente um dia vai morrer e não o vou levar para a tumba”.
JN: E o seu editor aceitou isso com facilidade?
Doc: Foi, foi. É uma pessoa inteligente, muito sensível, falou “Tem razão. Vamos liberar isso”. E os livros estão todos liberados no Espanhol.
JN: Em relação aos seus livros, tenho uma questão muito específica. Há um livro de que eu gostei também bastante, em que o Doc colaborou e escreveu o prefácio e os comentários, que é o livro com o Gabriel Garcia Márquez, o Me Alugo para Sonhar. Como é que surgiu essa colaboração?
Doc: É uma história interessante. Ele era presidente do Júri do Festival do Coral Negro e viu O Tempo e o Vento, e premiou O Tempo e o Vento.
Eu recebi depois o Coral, enfim, nem sabia que estava concorrendo. Aí, de repente, eu recebo o Coral Negro, e ele, o presidente do Júri, veio falar comigo e eu fiquei espantado, nem sabia que ele me conhecia.
Depois, ele explicou que em Cem Anos de Solidão se baseou em três livros: O Tempo e o Vento (de Erico Veríssimo), porque vai no tempo e no espaço, está sempre mudando o tempo e o espaço. Começa em uma guerra dentro de um casarão, tudo cercado, depois tem uns momentos em flashback. Então, é uma estória toda que mexe muito com o tempo.
O segundo de que ele me falou era o livro do Kafka, A Metamorfose. Ele disse assim, “Se pode virar barata, então pode virar árvore”.
E o terceiro livro em que ele se baseou para escrever foi As Mil e Uma Noites, que também tem uma estória que continua com a outra, que anda por outra.
Esses livros foram os três pilares que deram origem aos Cem Anos de Solidão, o seu arcabouço estrutural. E aí ele falou, “Eu quero trabalhar com você, você fez (a minissérie) O Tempo e o Vento”. E assim começamos.
Foi um ano muito brilhante, foi muito bom. Trabalhamos de Moscovo à Cidade do México. Trabalhamos em vários lugares, escrevemos, e seguimos amigos por longo período, visitava-o com frequência. Inclusive, no aniversário dele, eu estava no apartamento dele em Cuba. Ele não estava no apartamento, estava no México. Eu era o único hóspede, e assisti na televisão ao aniversário dele. Já não consegui falar com ele por telefone. Quando olhei para ele na televisão, na porta de casa, as pessoas cantando, o olhar dele já estava morto. Depois foi muito triste: recebi um e-mail que dizia assim, “Ele se foi”. Três palavrinhas e eu sabia que ele tinha morrido.
Às vezes, eu costumava ligar para ele, porque sabia quais eram os horários dele, que ele acordava às 5h da manhã para escrever. Eu vivi com ele porta a porta, durante três meses. Só eu e ele no andar, imagina se você não vai ficar íntimo da pessoa. Depois, na França, enfim, é uma vida, e está realmente contemplada nesse livro o Me Alugo para Sonhar, que não saiu no Brasil, curiosamente.
Também acho que é importante dizer que a minha vida não é uma linha de êxitos infinita. Ao contrário, tive momentos muito baixos na vida.
Logo no início do século XX, em 2001, foi muito difícil para mim, porque eu não estava nem na Europa, nem no Brasil. Fiquei perdido. Então, foi muito difícil, não conseguia trabalhar. Fiquei desconhecido, absolutamente. Essas fases vêm e passam na vida, mas no momento que você está vivendo aquilo, você sofre.
JN: Sim, claro. É importante passar também essa mensagem. Como referiu há pouco, a vida de guionista é muito incerta, é uma profissão muito insegura. Portanto, as pessoas, têm que estar prontas para esse jogo de cintura, essa capacidade de ter o bom e os sucessos e depois ter também, se calhar, períodos em que as coisas não vão andar como elas gostariam.
Doc: Atualmente, acho que tudo ficou assim. Todas as profissões ficaram mais ou menos assim, incertas e inseguras.
JN: Sim, sim. Isso é verdade também.
Doc: Tudo instável. É um mundo líquido. Tudo é líquido agora. O tempo líquido, se transforma, vem para cá, vai para lá.
JN: Quero aprofundar um pouco o seu trabalho de autor, mas vou começar com uma provocação: escrever é um prazer, uma provação, ou um vício?
Doc: Essa pergunta é muito capciosa, você pergunta se o trabalho criativo é um prazer, um vício, ou uma maldição. São as três coisas juntas.
Para mim é mais um prazer. Se eu não escrevo alguma coisa num dia, o dia já não presta, foram horas mortas. Escrever dá um prazer enorme. Dando prazer te vicia. Mas é principalmente prazer.
JN: Nesse caso, quais as obras que escreveu para televisão ou cinema que mais prazer, mais orgulho lhe causam ainda hoje?
Doc: É difícil, sabe? Porque cada coisa que você faz é como um dedo na mão. São diferentes uns dos outros, mas são todos queridos e necessários.
Mas vá lá… Realço dois projetos que acho interessantes. No cinema, eu até tenho um filme português com o Jorge Marecos, Encontros Perfeitos, tem filme francês, tem filme na Espanha, mas nesse caso eu prefiro falar do filme Beijo no Asfalto, do Bruno Barreto, que achei muito bom.
Foi o roteiro, o guião que me deu mais satisfação. Até hoje, as pessoas falam desse guião, inclusive o Spielberg adora esse filme. Enfim, é o Beijo no Asfalto.
A minissérie de que eu gosto muito, aí eu ressaltaria mesmo O Tempo e o Vento, que é uma adaptação também, do Erico Veríssimo, e que me deu um passaporte mundial. Eu já tinha esse passaporte, mas você tem que estar sempre renovando o passaporte. Primeiro eu fiz as minisséries, depois fiz as supersséries, mas temos que estar sempre renovando esse passaporte internacional.
Referir também Lampião e Maria Bonita, outra minissérie que ficou muito bem. Teve grande sucesso internacional, ganhou prémio nos Estados Unidos, e por aí. Seriam essas as minhas favoritas.
JN: Já falou das obras que lhe deram mais satisfação. E as mais frustrantes do seu trabalho, quais foram?
Doc: Eu até pensei numas, sabe? Mas é melhor não dizer, porque as pessoas já faleceram. Eu já esqueci. Uma, inclusive, foi na Espanha, só para localizar, e outra foi aqui no Brasil. Realmente, só me deram aborrecimento e rixas e lutas.
JN: Eu pergunto isto, não por curiosidade mórbida, mas para passar essa ideia de que, quando nós trabalhamos como roteiristas, estamos a trabalhar com outras pessoas e para outras pessoas, para outras visões criativas. A frustração muitas vezes faz parte também do nosso processo e ninguém é imune a isso. Para os novos roteiristas pode ser importante perceber essa realidade.
Doc: É, mas o mundo vai ficando mais e mais para os guionistas, o autor está sendo mais valorizado atualmente. Inclusive, já vem em todos os créditos, já vem o autor. Porque, na verdade, a autoria, em cinema, são três coisas: é a direção, a produção e o guião. É uma trindade. Se você quebra uma dessas pernas, você não se dá bem.
E nesses dois trabalhos, tive problemas com quem? Foi um filme e uma série. Tive problemas com um diretor num, e noutro com um produtor, que raramente tenho. Mas nesse caso tive.
E também sofri roubos. Sofri roubos de ideia, roubos de material. Quer dizer, é curioso isso. Passei por muita coisa, então tenho uma experiência grande. Não é uma profissão isenta de perigo.
Normalmente, o que você imagina, o que você faz, vai perder do papel para a tela, do papel para o ecrã, vai perder 10%. Se começar a perder 30%, 40%, aí realmente o autor não pode reconhecer mais.
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Normalmente, o que você imagina, o que você faz, vai perder do papel para a tela, do papel para o ecrã, vai perder 10%. Se começar a perder 30%, 40%, aí realmente o autor não pode reconhecer mais. – Doc Comparato
JN: Como é que é o seu processo de autor, o seu processo criativo e de escrita?
Doc: O roteirista, ele é uma pessoa que tem que tratar com dois campos. Aquilo que é feito para ser lido e aquilo que é feito para ser visto pelo olho da câmara.
São dois processos diferentes. O argumento, o logline, o tagline, essas coisas todas têm que ser bem escritas, não precisam ser dramaticamente corretas. E, quando você vai para o outro lado, você precisa ter cena, tipos de cena, tempo dramático, é outra coisa, muda a sua perspectiva. Num vendemos a palavra, noutro vendemos a imagem com a palavra.
Então, no futuro, o que vejo da produção é que ela vai ficar realmente como uma equipe. Ela pode ser coletiva, mas ela continua sendo autoral. Tem que ter alguém que mande, que tenha a cabeça em cima de tudo isso.
JN: Já que estamos a falar no futuro, como é que vê a questão da Inteligência Artificial e que impacto ela pode ter na nossa profissão?
Doc: O impacto? Impossível imaginar. Ela tem que ser regulamentada de alguma forma ou de outra, mas regulamentar como?
Acho que, no futuro, cada um vai ter a sua Inteligência Artificial. Os livros que lhe interessam, as coisas que lhe interessam serão suas. Você vai ter uma IA própria.
E nós podemos fazer isso, porque aí é um território completamente desconhecido, inóspito e plano. Ninguém sabe nada do que vai acontecer.
JN: Sim, também acho. Ainda há muitas coisas para perceber.
Doc: Ainda temos muitas coisas para entender o que vai acontecer, porque a espiral, o tempo é cada vez mais rápido.
JN: Está tudo ocorrendo muito depressa.
Doc: A gente sabe onde começou, mas não sabe onde é que vai parar. Começou aqui embaixo no teatro grego e subiu.
JN: O principal poder das estórias é o poder de unir as pessoas à volta de uma mesma ideia, ou de uma mesma emoção, ou de um mesmo tema. Uma estória pode unir muitas pessoas, muitas gerações, à volta daquela ideia. Se no futuro, como o Doc estava a imaginar, cada pessoa tem a sua Inteligência Artificial, tem o seu autor pessoal, não se perde essa experiência partilhada?
Doc: Essa experiência partilhada já foi fixa, agora ela é menos fixa. Eu posso ver uma coisa hoje e você vai ver a mesma coisa amanhã. Não é partilhada no mesmo tempo.
JN: Já não é como era antigamente, em que as pessoas, na segunda-feira, todas falavam do episódio da televisão que tinha passado no domingo, e aquilo era o tema.
Doc: Ou falavam do livro tal, ou da crónica do jornal tal. Não tem mais isso. Cada um fala de uma coisa.
JN: Ainda neste aspecto mais prático que estávamos a explorar, quais são as suas rotinas? Tem um lugar, um horário em que a musa vai lá bater à porta, ou não tem essas rotinas?
Doc: Eu tenho. Eu começo a escrever, nessa hora (de manhã) eu estou sempre escrevendo.
Eu trabalho porque gosto do que faço. Acho que uma das coisas mais importantes na vida é você ter a vocação. A vocação nem sempre tem um talento, mas a vocação acompanha o talento, normalmente, para uma certa coisa. Eu tenho esta vocação desde garoto. Eu queria fazer filmes, escrever.
Por isso, tenho esta rotina, são 15 passos.
Já morei em Sintra, numa casa enorme, agora estou sozinho, e são 15 passos da minha cama para o meu escritório. Fico ali, olhando o Jardim Botânico, e está tudo ótimo. Escrevo a manhã inteira. Almoço tarde e depois descanso, e dedico-me a ler, ver filmes, essas coisas.
JN: Então é um homem da manhã?
Doc: Sim, sou matinal, sou um pouco matinal.
JN: Doc, se você quisesse colocar um cartaz na estrada com um único conselho para os novos roteiristas, em letras garrafais, qual era o conselho que o Doc deixava a um novo praticante desta profissão?
Doc: Eu acho que o roteirista e guionista realmente é o escritor intrínseco do terceiro milénio. Ele realmente vai se tornar a parte criativa do terceiro milénio. Ele está implicado nisso, é o escritor do novo milénio, porque o audiovisual caminha a olhos vistos.
Mas isso não o isenta das dificuldades e dos obstáculos da profissão. Pelo contrário, por um certo ponto, eles até aumentaram, porque estão tentando sempre diluir a autoria, e a autoria não pode ser diluída.
A própria Inteligência Artificial não sabe fazer poemas. Ela faz poemas no estilo, sei lá, de Camões, mas é apenas o mesmo estilo. Então, tem que ser dominada pelos artistas, não digo só os guionistas. Nesse caso, para finalizar, eu diria que guionista é a profissão do terceiro milénio.
JN: Bom, Doc, não quero roubar-lhe mais tempo. Muito obrigado por estes minutos que nos dedicou. Foi um prazer conhecê-lo há uns anos e foi um prazer agora voltar a falar consigo. E é em meu nome e em nome de todos os leitores aqui do site que agradeço a sua generosidade continuada.
Doc: Obrigado a você que dá essa chance para conversar. E queria aproveitar para dizer que foi muito confortante, foi muito importante na minha vida, tenho uma filha portuguesa, os tempos que eu vivi em Portugal. Só posso agradecer à vida por ter me contemplado com essa cultura, com essa cultura desse país maravilhoso que é Portugal. E a minha Sintra querida que mora no coração.
JN: No de toda a gente. Eu também vivi muito tempo em Sintra, é uma paixão partilhada.
Conclusão
Pode encontrar os livros de Doc Comparato para baixar gratuitamente nos sites:
Note por favor que, para baixar a versão mais recente do livro Da Criação ao Guião, referida na entrevista, deverá entrar na área em Espanhol do site Colmeah, pois na área brasileira a versão no Google Livros está incompleta.
Além desse livro poderá encontrar nestes recursos muitos romances, artigos e outras obras do autor.
Pode também ver, no YouTube, o filme Beijo no Asfalto completo.