Avançar para o conteúdo

Grandes Diálogos: “Veludo Azul”, in memoriam de David Lynch

    Esta semana um dos grandes do cinema mundial deixou-nos. Nunca mais veremos as cenas simultaneamente fascinantes e incómodas nascidas da imaginação fértil e única de David Lynch, ele que dizia que “O dia em que pescas uma ideia pela qual te apaixonas, mesmo que seja pequena, é um belo dia“.

    O argumentistas/realizador David Lynch, nascido em 1946, faleceu de doença prolongada logo após ter sido obrigado a deixar a sua casa, na sequência dos fogos selvagens que têm devastado o sul da Califórnia neste malfadado início de ano.

    Deixou-nos filmes como O Homem Elefante, Blue Velvet, Uma História Simples ou Mulholland Drive, e essa estranha obra-prima da televisão que foi Twin Peaks. Mesmo as suas obras menos conseguidas, como Dune ou o derradeiro Inland Empire, tinham sempre uma abundância de momentos icónicos e cenas inesquecíveis que poucos autores conseguem igualar. Apesar de ter sido várias vezes nomeado como melhor realizador para os Óscares, o único prémio que recebeu em vida da Academia foi um galardão honorário em reconhecimento à sua carreira. Era, provavelmente, um criador estranho demais, excessivamente fora do padrão, para conseguir o consenso entre os seus pares.

    Na frase de David Lynch que citei no início deste texto, usei “pescar” como tradução de “catch” intencionalmente. Lynch defendia que as “Ideias são como peixes. Se queres apanhar peixes pequenos, podes ficar pelas águas rasas. Mas se queres apanhar os peixes grandes, tens de mergulhar mais fundo. Lá nas profundezas os peixes são mais poderosos e mais puros. São enormes e abstratos. E são muito belos“.

    Deve ter sido nessas águas profundas, a que durante grande parte da sua vida David Lynch acedeu através da meditação transcendental, que ele “pescou” as ideias que deram origem a Veludo Azul, incluindo a cena que apresento hoje: a apresentação do temível e repugnante Frank Booth, um dos grandes vilões dos filmes.

    É um momento perfeito de cinema, que quem viu nunca conseguirá esquecer completamente (apesar de muitas pessoas possivelmente até preferissem que assim fosse). Os três personagens que figuram nesta cena são interpretados por Isabella Rossellini (Dorothy), Kyle MacLachlan (Jeffrey) e Dennis Hopper (Frank). Talvez tenham sido os papéis mais marcantes das suas carreiras.

    A cena que se segue foi retirada do guião original de David Lynch para Veludo Azul, terceira versão revista de 24 de Agosto de 1984. A sua versão completa é muito grande, com quase onze páginas divididas em três sequências narrativas. Por questão de brevidade vou apresentar apenas a parte do meio, em que Frank é introduzido (e o veludo azul também — na boca dele). A tradução, que inevitavelmente inclui uma abundância de palavrões, é da minha responsabilidade.

    INT. APARTAMENTO DE DOROTHY – NOITE

    (…)

    Ouve-se um NOC NOC na porta. Dorothy parece muito assustada. Move rapidamente um dedo para os lábios em sinal de “silêncio” e sussurra para Jeffrey.

    DOROTHY

    (sussurra, agitada)

    Cala-te… Depressa! Mete-te no armário… Não digas nada ou vais ser morto… Falo a sério.

    As BATIDAS na porta ouvem-se com mais força. Jeffrey recolhe todas as suas roupas e enfia-se no armário. Fica nu e escondido. Dorothy fecha o seu roupão e desliza para a porta de entrada. Abre-a.

    Jeffrey vê Frank entrar.

    Frank tem estatura média mas robusta e um corte de cabelo curto. Veste uma camisa azul justa e um velho casaco preto. Usa calças de ganga e botas. Tem uma espécie de sexualidade crua e agressiva – uma presença de “bomba prestes a explodir”.

    Entra devagar no quarto, sem tirar os olhos de Dorothy. Senta-se no sofá.

    DOROTHY

    Olá, bebé…

    FRANK

    (aborrecido, condescendente)

    Cala-te… É papá… Estúpida.

    DOROTHY

    Olá, papá.

    FRANK

    (em tom de não-te-lembras-de-nada)

    …o meu bourbon…

    Dorothy vai à cozinha preparar a bebida de Frank. Conforme passa pelo armário, Jeffrey consegue ver o medo no rosto dela.

    Regressa com um pequeno copo de bourbon, que entrega a Frank. Este bebe um golo.

    FRANK

    Senta-te… Apanha a tua cadeira…

    Dorothy traz uma pequena cadeira que estava encostada à parede e senta-se. Ajusta o roupão.

    FRANK

    (estudando-a)

    …abre as pernas…

    Dorothy afasta lentamente as pernas. Consegue ver Jeffrey observando-a da escuridão do armário.

    FRANK

    Mais…

    Ela abre mais as pernas.

    Frank olha para as virilhas dela e bebe o seu bourbon. Olha para o chão por um momento e depois de novo para Dorothy, o seu corpo – as suas virilhas.

    Dorothy olha para o teto, aguardando. Frank subitamente procura o seu cinto, onde tem uma pequena garrafa de gás e uma máscara. Abre uma válvula na garrafa e cobre o nariz e a boca com a máscara. A garrafa está cheia de hélio, que torna a voz de Frank muito aguda e estranha. O resultado é assustador.

    FRANK

    (voz aguda)

    …mamã…

    Dorothy treme. Continua a olhar para o teto.

    FRANK

    (continuando com a voz aguda)

    …MAMÃ!…

    DOROTHY

    (assustada)

    …a mamã está aqui…

    FRANK

    (voz aguda)

    O bebé quer foder…

    Nesse momento a voz de Frank fica normal.

    FRANK

    (voz normal, mas alta – como uma ordem militar a si mesmo)

    PREPARA-TE PARA FODER!

    Frank aproxima-se de Dorothy e ajoelha-se à frente dela. Faz mais uma inspiração de hélio.

    FRANK

    (voz aguda)

    O bebé quer veludo azul…

    Dorothy abre o roupão e dá uma dobra a Frank.

    DOROTHY

    (sussurrando)

    Está bem.

    Frank move lentamente a boca sobre o roupão, passando os lábios pela textura do veludo. As suas mãos acariciam o veludo e o corpo de Dorothy por baixo. Começa a apertar-lhe o peito, enquanto chupa e morde o roupão de veludo.

    Dorothy está muito assustada, mas apesar disso vai ficando excitada. Nesse momento Frank, de forma doentia, puxa Dorothy para o tapete. Avisa-a.

    FRANK

    Não olhes para mim!

    Começa a enfiar partes do roupão na boca dela. De repente, puxa os braços dela para trás. Ela deixa-os lá, para Frank poder fazer o que quer. Frank chupa e morde o veludo que sai da boca dela, enquanto belisca e apalpa os seus seios, de uma forma estranha, compulsiva e doentiamente tímida. Dorothy geme. Frank respira pesadamente. Apalpa a virilha dela.

    FRANK

    Não olhes para mim!

    (respira pesadamente)

    O papá está aqui…

    Começa a enfiar o roupão na própria boca e sobe para cima de Dorothy. Começa a mexer-se em cima dela, puxando o seu corpo nu para si. Move-se cada vez mais depressa, até ter um orgasmo nas próprias calças. A cabeça de Dorothy tomba para trás. Consegue ver Jeffery desfocado – no armário. Cuidadosamente, olha de lado para Frank.

    FRANK

    (grita)

    Não olhes para mim!

    Golpeia-a no rosto. O nariz dele pinga enquanto abafa soluços que vêm do mais fundo de si mesmo. Afasta-se dela gatinhando. O roupão solta-se da sua boca. Respira ainda mais pesadamente. Levanta-se e começa a andar pelo apartamento. Vai até à parede e apaga as luzes, dirigindo-se depois para a casa de banho, enquanto respira longas golfadas de ar, tentando abafar o choro. Dorothy geme suavemente.

    Tudo fico parado e calmo por alguns instantes. Depois, Jeffrey ouve Frank, com a sua voz aguda do hélio, a falar sozinho na casa de banho. Os sons agudos, estranhos, reverberam à distância. Jeffrey não o consegue entender, mas logo ouve o riso agudo de Frank. Este regressa à sala, trazendo a máscara no rosto. Toda a sua respiração – todos os sons são agudos… Ri um pouco e atravessa a sala escurecida em direção à porta.

    FRANK

    Vai vivendo, bebé… Vejo-te no próximo Natal.

    Frank sai e fecha a porta. O apartamento fica em silêncio, exceto os gemidos de Dorothy.

    Jeffrey está chocado. Não se mexe. Observa Dorothy na penumbra. Ela rola e começa a chorar. O choro é profundo e genuíno.

    (…)

    David Lynch vai fazer falta a todos os que amam o cinema. O que vale é que eu também acredito noutra coisa em que ele acreditava:

    “A consciência continua a viver. O corpo é como um carro, e o condutor é o espírito, um pouco de consciência, o átomo, a alma, podes dizer. E o carro envelhece e enferruja e cai aos bocados e o condutor desembarca e continua em frente.” – David Lynch

    Pode ser que um dia, quando chegar a minha vez de me apear desta viagem, encontre David Lynch num qualquer restaurante à beira da estrada e ele me possa revelar, em voz baixa e conspiradora, quem matou Laura Palmer.

    Pode ler o guião completo aqui =>

    E ver neste clip a parte essencial da cena; a introdução da máscara de respirar hélio com que Frank infantiliza a sua voz. Aviso já; é bastante perturbador.

    Deixe um comentário

    O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

    This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.