O writers’ room, ou sala de escritores, é um modelo de organização de escrita audiovisual em que diversos guionistas se reunem para desenvolver colectivamente os episódios de uma série de televisão.
Todo o processo de escrita do writers’ room é, normalmente, levado a cabo sob a direcção de um autor/produtor executivo, conhecido por show runner.
As origens do writers’ room
Esta forma de trabalhar desenvolveu-se originalmente nos Estados Unidos, onde a televisão começou por ser herdeira das práticas criativas e de produção da rádio, mais do que das do cinema.
As limitações tecnológicas dos primeiros anos da televisão, dominada pelas transmissões ao vivo, forçaram a necessidade de produzir grandes quantidades de conteúdos originais. Isso contribuiu para que, desde o início, os autores/guionistas tivessem um papel muito importante no modelo de produção da televisão.
Essa situação foi-se mantendo ao longo das décadas e muitas pessoas acreditam que é uma das razões para a grande qualidade das melhores séries televisivas americanas, especialmente se comparada com o decréscimo de qualidade da produção cinematográfica em geral.
Bernardo Bertolucci, por exemplo, afirmou numa entrevista que “os filmes americanos de que gosto agora não vêm de Hollywood mas de séries de televisão, como Mad Men, Breaking Bad, The Americans“.

Um dos modelos adotados, o das narrativas serializadas, também foi herdado das séries dramáticas da rádio. Foi assim que surgiram as séries de ficção televisiva, que se estabeleceram, nos seus vários formatos, como a forma de entretenimento dramático predominante neste meio.
O modelo de trabalho do writers’ room acabou por surgir naturalmente como resposta a esta necessidade de produzir conteúdos de qualidade de forma constante e consistente. A equipa de guionistas garante o volume; a figura do show runner assegura a consistência criativa.
O modelo teve tanto sucesso na produção de narrativas dramáticas longas que até tem sido adotado pela produção de Hollywood para alguns projetos específicos.

O exemplo mais conhecido é o das sequelas do filme mais bem sucedido de sempre, Avatar. James Cameron, o argumentista e realizador do original, contratou um grupo de excelentes argumentistas e desenvolveu em sistema de writers’ room os filmes 2, 3 e 4 da saga, como forma de garantir a coerência de toda a estória.
É argumentável que outras sagas de longa duração, como por exemplo Star Wars, poderiam ter ganho muito se tivessem adotado este mesmo modelo para o seu desenvolvimento.
Como funciona um writers’ room
A leitura de livros como Na Sala de Roteiristas ou Difficult Men mostra-nos que há muitas variações do modelo básico do writers’ room, dependendo das características específicas das séries, dos modelos de produção que lhes estão associados e da personalidade dos envolvidos.
Mas, de forma geral, podemos dizer que o writers’ room se caracteriza pela:
- reunião de um grupo de argumentistas;
- durante um período limitado de tempo;
- sob a liderança de um show runner;
- numa sala de trabalho dedicada exclusivamente a esse fim;
- com o fim de desenvolver uma série de televisão.
Quando o writers’ room é criado o show runner já tem normalmente algumas ideias claras sobre o que será a série, pois isso é indispensável para obter o financiamento necessário ao desenvolvimento.
Como tal, o autor já terá definido a premissa geral da série, os seus personagens principais, o mundo onde a estória se desenrola, e o seu tom e estilo. É provável que também já tenha uma ideia sobre o arco da temporada, com os momentos mais importantes que a vão marcar: o seu arranque, as grandes viragens e até a conclusão.

O trabalho dos guionistas no writers’ room é então, essencialmente, desenvolver, concretizar e afinar todas estas ideias, sempre respeitando a visão original do autor.
Através de métodos de discussão como o brainstorming, os guionistas vão criando em grupo as tramas gerais e os arcos de personagem que compõe a temporada completa da série e, posteriormente, as tramas detalhadas de cada episódio.
Toda esta informação vai sendo registada em cartões colados em grandes quadros que enchem as paredes da sala. Os autores vivem, assim, literalmente mergulhados no universo que estão a ajudar a criar.

Um aspecto que é sempre referido é a necessidade deste grupo de autores ter grande confiança entre si. O processo de discussão implica que parte do contributo de cada autor passe por recordar e partilhar com o grupo estórias e experiências pessoais, que podem ser divertidas ou profundamente dolorosas.
Depois das tramas serem detalhadas, o show runner distribui a escrita dos episódios pelos vários guionistas, tendo em conta as suas características. Normalmente esta fase da escrita é feita individualmente, fora do writers’ room, em casa de cada guionista ou em postos de trabalho mais isolados.
Cabe ao show runner garantir a qualidade e a consistência de todos os guiões que os guionistas lhe entregam no final desta fase. Isto passa normalmente por lê-los e dar notas e sugestões detalhadas, que conduzem a sucessivas revisões. Em muitos casos a intervenção do show runner pode ir ao ponto de ser ele próprio a escrever a última versão de cada guião, o seu shooting script.
O show runner
O show runner é, assim, a figura central de todo este processo. No modelo americano ele é, além de autor e guionista, o produtor executivo da série. Os seus poderes, muito extensos, vão desde a definição da parte dramática ao acompanhamento e intervenção nas filmagens, passando pela escolha dos atores, realizadores e outros técnicos, seleção de locações, supervisão do orçamento, etc.
Normalmente o show runner é também o autor original da série, mas nem sempre é assim.
Quando um estúdio ou canal de televisão gosta de uma ideia, mas o seu criador não tem ainda a experiência necessária para desempenhar todas as funções associadas ao cargo de show runner, pode ser convidado um outro autor/produtor para tomar o leme de projeto, geralmente em estreita associação com o autor original.
É importante destacar que os investidores – produtoras, estúdios, emissoras – têm sempre um papel muito importante em todo este processo. Em algum momento desta fase de desenvolvimento os guiões irão ser-lhes apresentados para análise e comentários.
O peso de cada show runner é geralmente avaliado pela sua capacidade de fazer frente a estes donos do dinheiro na defesa da integridade artística do projeto. Um show runner mais importante conseguirá garantir que a série saia ilesa destes confrontos; um outro menos experiente ou respeitado terá mais dificuldade em impôr a sua visão pessoal e artística.
Volto a sublinhar que há variações significativas neste processo, por isso o ideal é passar a analisar dois exemplos concretos que mostram formas semelhantes, mas também diferentes, de organizar um writers’ room.

O writers’ room de Breaking Bad
A coisa mais importante que faço é gerir o writers’ room e garantir que a estória é bem contada. – Vince Gilligan
Vince Gilligan, o criador de séries como Breaking Bad e Better Call Saul, é um dos show runners mais importantes e respeitados nos EUA. Guionista de cinema desiludido com os rumos de Hollywood, descobriu na televisão o palco ideal para a sua vontade de criar narrativas dramáticas de longa duração.
Começou a sua carreira de escritor de televisão no writers’ room de X-Files, uma das mais bem sucedidas séries de televisão americana, para a qual escreveu mais de 30 episódios em várias temporadas.
Foi com um seu outro colega dessa série, Thomas Schnauz, que desenvolveu e vendeu a ideia original de Breaking Bad à cadeia AMC. A série, que se prolongou entre janeiro de 2008 e setembro de 2013, ao longo de 5 temporadas e 62 episódios, foi um sucesso de público e de crítica.
Para quem não viu essa série, que recomendo vivamente, ela conta a estória de Walter White, um professor de química que, quando descobre ter cancro, decide entrar no negócio da produção de metanfetaminas com Jesse Pinkman, um seu ex-aluno. O seu plano é juntar um pequeno pecúlio que garanta a subsistência da família depois da sua morte, mas a sua droga é tão boa que atrai atenções indesejadas de ambos os lados da lei. A série é uma análise fascinante da forma como o poder e o sucesso corrompem uma pessoa, um tema muito comum neste género mas que aqui é desenvolvido magistralmente.
No livro já mencionado, Difficult Man, há todo um capítulo dedicado à forma como Vince Gilligan dirigia o seu writers’ room de Breaking Bad. Esse capítulo pode ser lido, em forma resumida, num artigo do The Guardian.
Os passos são simples. Vince escolhe uma equipa de guionistas – seis ou sete – em que confia completamente, tanto do ponto de vista técnico como no lado humano. Os grandes traços da temporada já estão nessa altura definidos.
Esta equipa reune-se diariamente nos escritórios da empresa de Vince, numa grande sala, à volta de uma mesa enorme em que ele, como show runner, ocupa o lugar da cabeceira.
Aí discutem cada episódio detalhadamente, debatendo ao pormenor cada evento da trama e cada decisão de todos os personagens.
Vince vai lançando os temas, orientando, questionando, ouvindo e julgando todas as ideias que são atiradas para a mesa. O ambiente é solto, divertido, por vezes íntimo, sempre estimulante. O show runner é uma espécie de ditador benévolo; a decisão final sobre tudo é sempre sua, mas sabe que só incentivando esta dinâmica e a liberdade individual conseguirá reunir as melhores ideias.
Os passos decididos pelo grupo e aprovados por Gilligan são escritos em cartões e colados nos quadros que enchem as paredes da sala. Um assistente regista também tudo o que é dito ao longo do dia, sendo um resumo distribuído depois a todos os participantes. Nada é definitivo; uma ideia melhor pode sempre substituir outra anterior, num processo de discussão colectiva que leva, em média, duas semanas por episódio.
Segundo Vince, no final deste processo estão criadas escaletas tão detalhadas que qualquer guionista poderia escrever qualquer episódio. Mas é ele que distribui a escrita pelos diferentes autores, conforme o seu envolvimento em cada estória e as suas características pessoais.
Na primeira temporada Vince escreveu ele mesmo os primeiros quatro episódios; na segunda, apenas o último; e da terceira à quinta temporadas, tomou para si a responsabilidade de escrever os primeiros e últimos episódios, o que é uma estratégia comum com muitos show runners.
Cada guionista vai então escrever o episódio que lhe foi atribuído. O primeiro draft, que apresenta umas semanas depois, é lido por Gilligan e pelos outros guionistas, e recebe notas e comentários de todos.
Seguem-se sucessivas versões, cada vez mais apuradas e próximas do shooting script final que será, finalmente, distribuído e gravado.
Há vários vídeos disponíveis na internet sobre o writers’ room de Breaking Bad e o trabalho de Vince Gilligan como seu show runner. Seleccionei alguns, que dão uma ideia mais prática deste processo.
O writers’ room de Borgen
Escrevemos porque queremos criar experiências emocionais significativas para a audiência. – Adam Price
O sucesso do sistema do writers’ room levou a que também tenha sido adotado no desenvolvimento de muitas obras escritas e produzidas na Europa. O setor da BBC que é responsável pela escrita de ficção chama-se mesmo… The Writers’ Room.
Uma das emissoras europeias que mais liberdade criativa tem dado aos autores dentro deste molde de produção é a televisão pública da Dinamarca, a DR. Em troca dessa autonomia tem sido brindada com inúmeras séries de qualidade internacionalmente reconhecida.

Borgen é um dos melhores exemplos desse sucesso. É uma espécie de House of Cards mais positivo, idealista e otimista, em que acompanhamos a ascensão ao poder de Birgitte Christensen, uma dirigente política centrista que acaba por se tornar (ficcionalmente) a primeira mulher chefe de governo na Dinamarca.
Adam Price, o autor e show runner de Borgen, é um guionista e chef dinamarquês, muito conhecido e reconhecido em ambas essas qualidades. Numa master class que podemos ver no YouTube deu a receita detalhada do processo de escrita que levou a Borgen.
A série foi desenrolou-se em três temporadas e 30 episódios, que estrearam no canal público entre 2010 e 2013. Aparentemente está ainda prevista uma quarta temporada, que retomará os protagonistas originais e será exibida na Netflix em 2022.
O visionamento completo deste vídeo é muito interessante e recomendável. Adam Price, além de obviamente competente como guionista e capaz como show runner, é um tipo muito engraçado.
Foi o meu amigo Jorge Vaz Nande quem me chamou a atenção para esta master class. Ele fez no seu blogue pessoal um resumo do processo de escrita de cada episódio de Borgen, cuja leitura também recomendo.
Tudo começa com a apresentação à cadeia de televisão de um documento inicial de 10/15 páginas, que desenvolve a ideia geral da série – o que Adam Price define como a controling idea. Este documento demora cerca de três meses a ser criado por Price e pelos seus co-autores, num processo que envolve muitas reuniões (e, pelo que percebi, muita comida e bebida).
A controling idea [de Borgen] era escrever uma série idealista. – Adam Price
Depois de aprovada a ideia e financiado o desenvolvimento, Price passa a trabalhar diariamente com os seus argumentistas num sistema mais clássico de writers’ room. Começam por dedicar cerca de duas semanas a trabalhar todo o arco da temporada.
Depois desenvolvem em conjunto dois episódios de cada vez; quinze dias para um, quinze dias para outro, dedicados a escrever as suas escaletas muito detalhadas.
Na sequência disto, dois roteiristas vão escrever tratamentos muito completos, de mais de 20 páginas, para esses episódios. Isso leva, normalmente, uma semana. Estes tratamentos são muito importantes porque, com eles, a produção da série pode começar imediatamente a fazer algum trabalho de preparação.
Price faz então as suas notas a estes tratamentos e os guionistas têm, de seguida, cerca de três semanas para apresentar uma primeira versão dos guiões.
Seguem-se mais notas de Price e mais duas semanas para escreverem nova versão. A partir daí é o próprio Price que escreve as versões seguintes, que podem chegar a sete, incorporando notas da equipa, dos atores, do canal, etc.
Algures nesse processo há uma leitura do guião pelo elenco, com os técnicos principais presentes. Desta leitura ao vivo nasce a última versão – o shooting script.
No total, o processo demora cerca de 12 semanas para cada dois episódios. É muito tempo…
E nos países de língua portuguesa?
Versões do writers’ room são também usadas no desenvolvimento de ficção em português, tanto em Portugal como no Brasil.
Por exemplo, o modelo de escrita das telenovelas também recorre a equipas de escrita. Estes grupos de guionistas trabalham sob a direção de uma espécie de show runner, o autor da novela, que muitas vezes acaba por ter uma grande notoriedade pública.
Cabe a este autor, normalmente, a responsabilidade de escrever e apresentar o documento inicial com a ideia geral da telenovela, que será aprovado pela emissora. Lembro-me de ter estado numa conferência de guionistas em Atenas com o autor brasileiro Marcílio Moraes, que estava preocupado porque já deveria, nessa altura, estar em retiro a escrever o tratamento da sua próxima telenovela.
Aprovadas as linhas gerais, começa o planeamento detalhado da telenovela, primeiro no seu arco completo, e depois em blocos cada vez mais apertados – um mês, uma semana, um episódio. Este trabalho é partilhado entre o autor e o seu writers’ room que, nesta fase, pode envolver toda a equipa de escrita ou apenas um grupo mais restrito de supervisores.
As principais diferenças específicas das telenovelas são os prazos de escrita e a sua divisão pelos guionistas.
Os prazos de uma telenovela são sempre mais apertados. É preciso ter cinco ou seis episódios escritos por semana, consistentemente, sem derrapagens, o que obriga a um processo ainda mais industrial e, normalmente, tem impacto na qualidade da escrita. Não se espera de uma telenovela que atinja os patamares de um Breaking Bad ou Borgen.
Quanto à distribuição, em vez de cada guionista receber um episódio completo para escrever, é muito comum que lhe sejam atribuídos blocos de cenas relacionadas com uma determinada trama ou núcleo de personagens. Compete depois ao autor, ou a um supervisor de escrita, juntar e organizar as diversas sequências de acordo com as escaletas definidas na sala de escrita.
Mas não é só nas novelas que modelos semelhantes ao writers’ room são usados.
A Rede Globo, por exemplo, anunciou há três anos a criação da Casa dos Roteiristas, um mega-writers’ room dedicado ao desenvolvimento e escrita de todas as suas séries e minisséries de ficção. O autor Fernando Bonassi falou sobre essa Casa e o método de trabalho lá usado na sua intervenção no Festival A Quatro Mãos.
O que é legal na Casa dos Roteiristas é que tudo é intensamente debatido. – Fernando Bonassi
Eu próprio já participei em diversos writers’ rooms, desde a primeira série que criei, O Espírito da Lei, até aos do Inspector Max e Liberdade XXI.
Todas essas experiências, satisfatórias e estimulantes, tiveram muitas coisas em comum com os processos que analisei acima, nomeadamente o trabalho coletivo no desenvolvimento do arco das temporadas e a discussão dos episódios individuais.
Destaco no entanto três diferenças fundamentais:
- O papel do show runner não era tão definido, ou nem sequer existia;
- Os prazos eram sempre incomparavelmente mais apertados;
- E nunca tivemos uma sala dedicada exclusivamente aos projetos, com quadros de cortiça nas paredes e rebuçados em cima da mesa.
Conclusão
O writers’ room é um modelo de escrita de ficção audiovisual que veio para ficar. Não é o único modelo possível mas, devido à qualidade de resultados que possibilita, é um caminho que seguramente iremos ver replicado em cada vez mais projetos, de cada vez mais países.
Termino com dois vídeos de mesas redondas que reunem vários show runners conhecidos, incluindo Vince Gilligan, falando sobre os seus processos. Há muitos vídeos semelhantes disponíveis, sendo sempre um prazer mergulhar nas cabeças destes autores.
Qual é a sua opinião sobre os writers’ room? Tem experiências pessoais nesse formato de trabalho que queira partilhar? Use os comentários abaixo para deixar o seu contributo.
Ainda acerca de Vince Gilligan enquanto show runner, nas últimas semanas Thomas Schnauz partilhou no seu twitter o desenvolvimento de um dos episódios de Better Call Saul (sequela/prequela de Breaking Bad), “Bad Choice Road”, nomeado para um Emmy de melhor guião. Mostra todo o processo deste episódio que escreveu e realizou, incluindo a evolução dos quadros de cartões. Muito interessante.
Obrigado pela dica, vou ver.
A sequência de Twitter referida pode ser vista aqui: https://twitter.com/TomSchnauz/status/1296912710601306113?ref_src=twsrc%5Etfw