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Curso #9: Conflitos e surpresas

    Para mim, o sinal de uma boa estória é simplesmente querer saber o que vai acontecer a seguir, do começo ao fim.

    Leslie Dixon

    Catalisador e clímax

    Vimos antes que um bom filme deixa no ar, desde o início, uma questão dramática forte que o espectador vai querer ver respondida antes do final.

    O momento em que a questão dramática começa a ser apresentada é designado por incidente incitante ou catalisador (em língua inglesa, o inciting incident). Ao momento em que ela é respondida chama-se, normalmente, o clímax da estória.

    Falaremos mais detalhadamente destes dois pontos chaves num artigo futuro, mas para já basta pensar neles como um par de chavetas { … } que se abrem e fecham em redor da nossa estória, marcando o seu verdadeiro arranque e fecho.

    O que vem antes é apenas enquadramento básico; o que vem depois é o fecho de algumas pontas soltas; mas o sumo, o essencial da estória, está entre estes dois momentos.

    É preciso ir alimentando o interesse do espectador entre o catalisador e o clímax. Isso consegue-se lançando sucessivas questões dramáticas menores, numa cadeia ininterrupta de perguntas e respostas. É como ir lançando lenha mais fina numa lareira para alimentar a chama e não deixar o tronco principal apagar-se.

    A Noiva quer a sua vingança servida fria.

    Uma sucessão de perguntas

    Do ponto de vista do espectador uma boa estória é sempre uma sucessão de perguntas que vão ficando no ar: Quem é este? O que é que esta quer? Como é que ele se vai safar daqui? Este é amigo ou inimigo? Este local será perigoso? Porque é que estão a discutir? E, mais importante do que qualquer outra: o que é que acontece a seguir?

    O espectador não tem de fazer estas perguntas conscientemente; na maior parte dos casos elas ficam apenas sentadas na fila de trás da sua consciência, como uma espécie de comichão mental que o impede de fazer a pergunta fatal: porque é que estou a perder o meu tempo a ver isto?

    De igual forma, a resposta a estas questões parciais não tem que ser imediata e sucessiva; algumas podem ficar suspensas mais tempo do que outras, mantendo-se em aberto até a resposta, finalmente, nos apanhar de surpresa.

    Há outro aspecto que convém realçar: a questão dramática inicial, muitas vezes, é substituída a meio da estória por outra ainda mais relevante. É como se, em determinado momento, o protagonista percebesse que o seu objectivo inicial já não é importante, pois outro muito superior se apresentou entretanto.

    Por exemplo, em “Kill Bill: Vol 1” a questão dramática inicial é se A Noiva conseguirá vingar-se dos restantes elementos do Deadly Vipers Assassination Squad ou se morrerá a tentar.

    A partir do momento em que ela descobre que a filha está viva, no final do primeiro filme, a questão dramática passa a ser se ela conseguirá reavê-la  – uma questão muito mais relevante.

    Não foi por acaso que o guionista Quentin Tarantino a reservou para o final do primeiro filme, que é o Ponto Médio da estória tomada como um todo. Era preciso uma nova questão dramática muito forte para manter vivo o nosso interesse até chegar o Vol. 2.

    Conflito e surpresas

    Uma boa estória, como vimos antes, é aquela que mantém o espectador permanentemente  na expectativa do que vai acontecer a seguir.

    Se o nosso guião conseguir fazer isso, por muito “mal escrito” que esteja, por muitos “erros” estruturais que tenha, por muitas “regras” que quebre,  é um guião que funciona.

    Essa capacidade de manter o espectador curioso é o que caracteriza um bom guionista, aquele que tem um entendimento apurado dos mecanismos dramáticos e da psicologia do espectador. A criação de oportunidades de conflito tem aí um papel fundamental.

    Todo o drama é conflito. Sem conflito não há acção. Sem acção não há personagem. Sem personagem não há estória. E sem estória com certeza que não há guião.

    Syd Field

    Sem forças antagónicas em jogo; sem um protagonista que quer algo, e antagonistas e obstáculos que o atrapalham; sem recompensas a receber e dificuldades a ultrapassar; sem luta, dor e sofrimento, não há drama. E sem drama não há interesse, nem mesmo numa comédia. As melhores comédias têm, debaixo da capa açucarada do riso, os mesmos ingredientes dramáticos que qualquer outro filme.

    Mas o conflito não basta. São precisas surpresas.

    Conflito sem surpresas leva-nos ao território da agitação gratuita e entorpecente; surpresas sem conflito conduzem-nos a filmes gratuitos e desinteressantes.

    A combinação inteligente desses dois elementos é que mantém o espectador preso à nossa estória.

    Para isso o guionista joga com a expectativa e a antecipação.

    Conduz o espectador numa direcção, e depois satisfaz a sua expectativa ou, pelo contrário, introduz uma viragem que o leva noutra direcção. Dá ao espectador o que ele espera, de uma forma inesperada, ou surpreende-o com uma nova ideia, uma revelação imprevista, um desafio inédito.

    Tudo isto pode ser resumido no que designo por Fórmula do Drama.

    Drama = Conflito + Surpresas.

    Alguns exemplos

    O incidente incitante de uma estória é, normalmente, uma surpresa prenhe de conflitos. O mundo do protagonista tem um certo equilíbrio mas a surpresa arranca-o desse estado natural, colocando um conflito imediato ou potencial em cima da mesa.

    Em “O Silêncio dos Inocentes” a surpresa é Clarisse, uma estudante do FBI, ser convidada a entrevistar Hannibal “the Cannibal” Lecter; em “The Lookout” a surpresa é um violento acidente de automóvel que muda irreversivelmente a vida de um promissor atleta universitário; em “Sideways”, a surpresa é a viagem de Miles e do seu amigo Jack ser uma despedida de solteiro para a qual ambos têm planos muito diferentes; em “Os Espíritos de Inisherin” a surpresa é Colm anunciar que deixou de ser amigo de Padraic, para quem essa amizade era um dado adquirido.

    Todas estas situações têm um grande potencial de conflito: Clarisse contra um psicopata; Chris contra as limitações físicas causadas pelo acidente de automóvel; os planos de Miles contra as expectativas de Jack; a frieza de Colm contra a incompreensão de Padraic.

    Certifique-se de que o seu guião tem conflitos e surpresas em cada etapa, e estará no bom caminho para escrever uma estória que dará satisfação emocional aos seus espectadores.

    Exercício

    Faça uma lista de todos os potenciais conflitos e dificuldades a que o seu incidente incitante abre a porta.

    Se a lista for longa, está no bom caminho para uma estória de elevado poder dramático. Se, pelo contrário, não se conseguir lembrar imediatamente de problemas para o seu personagem enfrentar, talvez deva reconsiderar o interesse da sua ideia, ou assumir que ela não se enquadra no modelo clássico.

    Artigo atualizado em 14/03/2023

    9 comentários em “Curso #9: Conflitos e surpresas”

    1. agradeço imenso por esta ajuda, era isto que estava a precisar para limar umas arestas de um guião que estou a escrever, muito obrigado

    2. Apesar de ser leigo ao quadrado no assunto, os artigos me foram extremamente construtivos. Tenho algumas idéias de roteiros para filmes mas não fazia idéia de como pô-las em prática…

      Muito obrigado!

    3. Mt obrigado pelas dikas, a sua escrita ajudou-m imenso. Sera k existe algum pograma especifico para escrever um guiao?

    4. Muito bom este site e as informações que você fornece… penso que como toda a gente que procura informações sobre escrita de guiões e criação de historias, gostava de fazer os seus guiões, e com aquilo que se aprende aqui isso torna-se bem mais fácil…

      Não quero fazer publicidade à concorrência, mas para quem precisa de ajuda, também aconselho darem uma vista de olhos àquilo que Sandro Massarani… O conhecimento nunca é demais…

      1. Pedro,
        obrigado pela dica. Não conhecia o site do Sandro Massarani, mas acho que vou passar algumas horas por lá a ler o muito material que ele escreveu e reuniu. É um curso de iniciação à escrita de argumento (ou “roteiro”, como se chama no Brasil) e, pelo que já provei, parece ser muito útil.
        Para quem não conhece, a ligação é esta.

    5. Pingback: João Nunes | Lincoln | O que podemos aprender com… "Lincoln" | argumento, escrita, guião, Lincoln, roteiro, Steven Spielberg, técnica, Tony Kushner |

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