“Toda a gente passa por mil ideias para estórias em cada dia. Os bons escritores são os que reparam em cinco ou seis delas. A maior parte das pessoas não vê nenhuma.”
– Orson Scott Card
Onde é que vamos encontrar as boas ideias de que falámos no capítulo anterior? Qual é o segredo de todos os guionistas que conhecemos e admiramos?
Todos os dias passam por nós as sementes de muitas boas estórias cinematográficas, mas normalmente estamos demasiado distraídos ou ocupados para as perceber. O mundo à nossa volta, o mundo dentro de nós, a tradição que herdámos, são fontes inesgotáveis de inspiração: basta saber onde procurar.
Sem querer ser exaustivo, diria que todas as boas (e as más…) ideias vêm de quatro fontes possíveis:
- O nosso mundo íntimo
- O mundo ao nosso redor
- A tradição narrativa
- Adaptação de obras existentes
O nosso mundo
A primeira fonte para encontrar boas ideias é o nosso mundo, a nossa própria vida, actual ou passada. Ideias que sejam geradas desta forma são normalmente muito pessoais e importantes para o guionista, que lhes vai dedicar o melhor de si mesmo. Isto é uma vantagem, mas também pode ser uma desvantagem: o autor por vezes não tem o distanciamento suficiente para perceber que uma ideia que lhe é tão cara pode não ser interessante para as outras pessoas.
Experiência
Costuma dizer-se “Escreve o que conheces”. A nossa experiência pessoal, ou seja, aquilo que vivemos, é uma fonte importante de ideias. Principalmente se essa experiência for singular, original, diferenciada da vivida pela maior parte das pessoas.
Um polícia, um bombeiro, um para-médico, um nadador salvador, um jogador de póker internacional, um padre exorcista, terão com certeza estórias, factos, episódios interessantes das suas vidas que podem servir de inspiração para boas estórias.
“Almost Famous”, um dos meus filmes favoritos, nasceu da experiência pessoal do guionista e realizador Cameron Crowe. Mas nem todas as pessoas têm vidas tão variadas ou fascinantes.
“Almost Famous” nasceu da experiência pessoal do guionista.
Memória
Somos máquinas de recolher e processar informação desde o momento em que nascemos.
Muita dessa informação sedimenta no nosso espírito sob a forma de memórias. Agitar as águas e trazer essas memórias ao de cima é sempre uma fonte garantida de ideias – umas melhores, outras piores, umas mais adequadas, outras perfeitamente inúteis.
Filtre-as, decante-as, analise-as com a cabeça e o coração. E em caso de dúvida discuta-as com alguém de confiança.
Medos, sonhos e fantasias
Os nossos medos, presentes e passados, podem ser uma poderosa fonte de inspiração.
Qual é a coisa que mais teme na vida? Perder um filho? Ser traído? Ficar na miséria? Envelhecer? Escreva sobre isso – é mais barato do que ir ao psicólogo e dá o mesmo resultado.
Mas os sonhos e as fantasias também são óptimas avenidas para encontrar uma boa estória.A maior parte das nossas aspirações são partilhadas por milhões de outras pessoas.
Gostava de voar? Eu iria adorar, e o mundo está cheio de pessoas com a mesma fantasia. Se encontrar uma boa estória sobre esse tema, com uma abordagem diferente e inovadora, tem uma audiência garantida.
Imaginação
Venha de que parte do nosso mundo pessoal vier, é raro que uma ideia possa ser passada sem mais para o papel. Normalmente é preciso enriquecê-la com a nossa imaginação.
A capacidade de, a partir do nada ou de muito pouco, criarmos qualquer coisa nova é um dom maravilhoso.
Mas a imaginação é também um músculo que tem que ser treinado desde criança. E a imaginação do narrador de estórias tem características especiais, que podem ser desenvolvidas e melhoradas, mas que têm de estar presentes na nossa personalidade básica.
Se na escola primária você já era aquela criança à volta da qual as outras se vinham sentar para ouvir contar uma estória, então é provável que esse músculo exista e só esteja a precisar de algumas flexões para aquecer.
Para estimular a imaginação, uma técnica que funciona sempre é a da especulação. Lançar ao ar as inocentes palavras “e se…” dá sempre bom resultado.
“E se um jovem com problemas descobrisse que pertence a uma família de mágicos e fosse levado para um colégio reservado a outros como ele?”.
Nunca ninguém viu um colégio para jovens bruxos; mas todos sabemos, por experiência própria, como os adolescentes são rebeldes, curiosos e obstinados. Juntemos experiência e imaginação, e temos uma ideia.
Será uma boa ideia? Possivelmente – pelo menos o suficiente para tornar a sua autora imensamente rica em menos de dez anos…
Mantenha um diário
O melhor conselho que lhe posso dar para explorar bem o seu mundo interior é manter um diário.
Pode ser um caderno simples, ou uma estilizada Moleskine, mas habitue-se a tê-lo sempre consigo e a anotar cada ideia, cada episódio, cada frase que pensa ou ouve, cada memória que recorda.
Não é para escrever todos os dias “Querido diário, hoje…” e fazer uma lista burocrática de eventos.
É melhor uma abordagem mais solta e descontraída, mas mais contínua também.
Em caso de seca de ideias, mergulhar num caderno com alguns anos é uma reserva de surpresas, nem sempre agradáveis mas seguramente estimulantes.
O mundo ao nosso redor
A segunda fonte para encontrarmos boas ideias é, obviamente, o mundo ao nosso redor.
Há tanta coisa a acontecer à nossa volta que só alguém muito distraído não consegue ver o seu potencial dramático. Olhos abertos, ouvidos atentos, mente curiosa – a realidade é uma árvore cheia de frutos maduros à espera de ser colhidos pelos contadores de estórias.
Jornais, revistas, internet
No jornal do dia em que escrevi isto havia cinco ou seis notícias que podiam dar boas estórias: um empresário da noite assassinado tem ligações às claques de um clube desportivo; uma criança desaparecida deixa um país inteiro a especular; numa grande empresa financeira duas facções digladiam-se pelo poder e controlo; uma mulher é a única sobrevivente de um acidente de aviação em que morre toda a família chegada; um juiz investiga a possibilidade de uma célula terrorista estrangeira estar activa no nosso país…
E estou a citar de memória, sem ter tido sequer a preocupação de ler o jornal à procura de estórias.
Habitue-se a recortar e guardar as notícias e artigos interessantes e terá também aí um manancial de ideias sempre à sua espera.
Um dos meus guiões, “Salvador”, nasceu de uma notícia que li num jornal há muitos anos atrás. Apesar de hoje quase nada restar dessa notícia na estória, foi ela a semente original.
Conversas e estórias ouvidas
Um escritor é um aspirador de palavras. Os nossos ouvidos devem estar sempre à procura, o nosso radar sempre ligado, atento às ideias estimulantes, estórias inéditas, episódios engraçados.
As pessoas adoram contar o que lhes acontece de especial e diferente, e saber ouvi-las é uma maneira simples e eficaz de multiplicar a nossa própria experiência.
Da próxima vez que fizer uma viagem de comboio não se feche no seu smartphone. Puxe conversa e ouça o que o seu vizinho tem para lhe contar.
Esta atenção constante serve também, como veremos mais à frente, para ir ganhando sensibilidade às diferentes formas de falar, aos ritmos, vocabulários e tiques de conversa que nos ajudam a diferenciar uns personagens dos outros.
Casos reais e temas do momento
Os casos de vida, estórias reais de que tomámos conhecimento, são por vezes tão fascinantes que podem dar-nos logo vontade de começar a escrever.
É preciso, contudo, ter cuidado sobre a forma como tomámos conhecimento desses casos, e garantir que temos o direito de os contar.
Podem ser tão específicos e evidentes que precisaremos da autorização das pessoas envolvidas.
Ou podemos ter sabido deles através de uma fonte secundária – um artigo numa revista, um documentário na tv – e nesse caso pode ser preciso obter os direitos dessa fonte.
Mais fácil é, em vez de pegar num caso real específico, pegar num tema do momento e usar a nossa imaginação para lhe dar forma.
A gripe das aves voltou a ser notícia esta semana? E se numa aldeia do interior da Beira fossem descobertos vários casos da doença?
Uma vez mais, o “e se…” é nosso amigo.
Universos e personagens singulares
Outra fonte estimulante de ideias é explorar universos, profissões, e personagens singulares.
Como seria a vida numa caravela no século XVI? Como será ser especialista em desminagem e ter de enfrentar todos os dias o perigo para salvar a vida de outras pessoas? O que é que leva uma pessoa a tentar bater recordes de resistência correndo no deserto com temperaturas altíssimas?
Levantar o véu sobre um mundo estranho e fascinante é uma receita garantida para fascinar e cativar uma audiência. Se nos fascinar também a nós, podemos passar à…
Pesquisa
Sempre que escrevemos sobre uma coisa que escapa à nossa experiência pessoal (e muitas vezes, mesmo quando escrevemos sobre ela) temos de mergulhar a fundo na pesquisa.
Quanto mais soubermos sobre o universo que queremos explorar e as pessoas que queremos descrever, mais ideias, mais pormenores, mais veracidade poderemos incluir na nossa estória.
Eu já vi vários filmes passados em naus, caravelas, galeões, juncos, e outras embarcações antigas. Mas isso não substitui a pesquisa que eu teria de fazer se me decidisse a escrever sobre a vida numa caravela do século XVI. Que tipo de pessoas lá iam? Como é que dormiam? O que comiam? O que faziam aos dentes que lhes caiam com o escorbuto?
É evidente que é impossível saber tudo isto sem ler testemunhos da época ou obras de outros investigadores.
No próximo capítulo veremos como a tradição da nossa sociedade e as adaptações de obras já existentes servem como fonte de material de trabalho para os guionistas.
Exercício
Compre um jornal do dia e leia-o de fio a pavio com atenção às notícias com potencial dramático. Transcreva-as para o seu novo caderno de ideias.
Artigo atualizado em 22-02-2023
Acabou aqui????
Desde que comecei a ler não consegui parar…
Mas a partir de agora não há continuação…
É como se estivesse a ver um filme e a meio faltasse a luz :(
Estou cursando uma especialização a distância – Mídias na Educação – e uma das atividades do módulo é preparar um roteiro e suas orientações foram excelentes.
Cordialmente,
Ana Cristina.
Estou iniciando nesta arte de escrever artigos e achei de muita valia a leitura, aprendi bastante.
Fantástico e muito útil.
4 CAPÍTULOS DE SUA “NOVELA”….AMANHÃ LEIO MAIS…..RSSS.
Cara, obrigado, depois de um acontecimento que eu tive no passado, comecei a ter o hábito de agradecer pelo que tenho. Quero te agradecer pela tua boa vontade de dizer essas palavras gratuitamente. Talvez para você sejam umas simples palavras, mas foi com uma aparente simples dicas como essa, que no passado eu li rapidamente, que tive uma simples ideia de escrever uma música, pois sou compositor, e foi a música mais vendida até o presente momento, nenhuma musica até agora superou a sua vendagem. Essa música intitula-se, DEIXEI DE SER COWBOY POR ELA, gravada pela dupla CHITÃOZINHO E XORORÓ em 1998
Eu deixo tambem uma dica legal aqui pra todos: querem fazer sucesso? é muito fácil, de tudo o que vocês possuem de bens materiais, e vão viver de favor, vão ser humilhados, tenho certeza absoluta que vcs não só farão sucesso com suas ideias como também serão mais que isso, se tornarão verdadeiras máquinas de ideias e farão grandes revoluções no mercado, “POBRE E AMBIÇÃO” juntas, é uma formula de fazer génios.
Fui!!!!
Estou a começar a pensar em escrever um guião para uma curta-metragem. E o seu site tem sido uma grande ajuda. continuarei a visita-lo várias vezes
Parabéns e obrigado!
Com os meus melhores cumprimentos,
Carlos Almeida
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