Penso já ter deixado claro que o modelo clássico de narrativa, que detalhei nos últimos artigos, não é a única forma de abordar uma estória. Há muitas maneiras de organizar a estrutura de uma obra dramática.
Por exemplo, Aaron Sorkin anunciou recentemente que vai estruturar a sua biografia de Steve Jobs, o fundador e patrão da Apple, falecido em 2011, em apenas três cenas de cerca de 30 minutos, narradas em tempo real.
É uma abordagem radical mas que mostra a diversidade de opções que um guionista tem ao seu dispor. O objetivo é encontrar a mais adequada para as características da estória que queremos contar.
Um dos modelos estruturais alternativos, de que se tem falado muito nas últimas décadas, é a chamada viagem do herói. É esta ferramenta que vamos conhecer hoje.
O herói das mil faces
Um dos livros mais influentes do século vinte, para muitos estudiosos, foi O Herói das Mil Faces, do antropólogo e historiador Joseph Campbell.
Campbell identificou uma série de etapas comuns em narrativas mitológicas, lendas e contos tradicionais de civilizações ou épocas muito diferentes.
Atribuiu essa coerência de experiências à existência de uma predisposição inata dos indivíduos para organizar as suas narrativas segundo um determinado padrão, a que chamou a viagem do herói, ou monomito.
No início dos anos 80 um analista de guiões da Disney, Christopher Vogler, escreveu um memorando em que adaptava a viagem do herói de Campbell do ponto de vista do seu interesse para o desenvolvimento de filmes. Para esse efeito simplificou as etapas propostas por Campbell, reduzindo-a a doze pontos essenciais.
O seu memorando teve enorme impacto entre os estúdios de Hollywood, sendo divulgado e partilhado por executivos, produtores e guionistas, entusiasmados com esta nova abordagem.
O sucesso foi tanto que Vogler se transformou num dos chamados “gurus” do guionismo, desenvolvendo e transformando o seu memorando num dos livros mais populares do sector, The Writers’ Journey.
A viagem do herói tornou-se assim um modelo muito popular em Hollywood, tendo contribuído para o desenvolvimento de muitos filmes de grande sucesso. Apesar de, como todos as soluções universais, ser muito contestada em certos quadrantes, a viagem do herói é mais uma ferramenta que os guionistas podem utilizar para analisar e refletir sobre as suas obras.
A viagem do herói
Para melhor entendimento desta abordagem estrutural iremos olhar um filme extraordinário, O Silêncio dos Inocentes segundo o seu prisma.
Isto não quer dizer que o autor do romance original, Thomas Harris, ou Ted Tally, o argumentista, tenham intencionalmente adaptado a sua estória a este modelo. Mas mostra como a estrutura mítica da viagem do herói está subjacente a obras muito diversas.
Segundo Vogler a adaptação da viagem do herói para os efeitos de uma narrativa cinematográfica passa por doze etapas:
- O Mundo Normal. No início o Herói é apenas mais uma pessoa normal que vive a sua vida no mundo ordinário. Temos que ter um entendimento básico do que compõe esse mundo para melhor apreciarmos o mundo especial da viagem que ele depois irá empreender. Em O Silêncio dos Inocentes o Mundo Normal de Clarice Starling é a academia do FBI onde ela é apenas mais uma estudante.
- A Chamada para a Aventura. Algo acontece que introduz uma perturbação no mundo ordinário. O herói é confrontado com um desafio, um problema ou um convite à aventura. No nosso exemplo, Clarice é convidada pelo Agente Especial Jack Crawford para ajudar na investigação do serial killer Buffallo Bill fazendo uma entrevista a um outro serial killer, Hannibal the cannibal Lecter.
- A Recusa da Chamada. Ao princípio o herói pode estar relutante em embarcar na aventura; não quer deixar o conforto do seu mundo normal. No caso de O Silêncio dos Inocentes não podemos dizer que Clarice hesita na aventura; pelo contrário, avança com entusiasmo para a entrevista. Mas são inúmeros os obstáculos que se lhe deparam, começando pelo dr. Chilton, inimigo declarado de Lecter, e pelo próprio Lecter, que inicialmente se recusa a colaborar com Clarice.
- O Encontro com o Mentor. O herói encontra então um homem ou mulher mais velho e sábio, o Mentor, que lhe dá a informação ou o estímulo decisivo para ele decidir avançar na viagem. Podemos argumentar que tanto Crawford como Lecter acabam por assumir o papel de mentores de Clarice. Mas Lecter tem um papel mais importante pois é ele que, após uma peripécia que muda a sua atitude face à jovem investigadora, lhe dá a primeira pista importante.
- A Travessia do Primeiro Limiar. O herói deixa o mundo ordinário e entra no mundo extraordinário onde vai decorrer a sua viagem. Esta passagem faz-se através de algum tipo de portal ou limiar, muitas vezes acompanhado de um Guardião que tenta travar a passagem. Clarice começa a investigar a pista dada por Lecter, procurando num armazém. É muito simbólico que ela tenha de rastejar para dentro do armazém, que até tem um verdadeiro guardião que a tenta dissuadir de ir sozinha. Lá dentro encontra os restos do que terá sido a primeira vítima de Buffalo Bill.
- Os Testes, Aliados e Inimigos. Segue-se o que Campbell designa como o caminho das provas, em que o herói, auxiliado por diversos aliados e antagonizado por outros tantos inimigos, tem de ultrapassar sucessivos obstáculos e testes na procura do seu objetivo. É o que Clarice faz quando se junta à investigação de Crawford, enfrentando obstáculos que vão desde o preconceito sexual à arrogância, decifrando enigmas com a ajuda de aliados, e recorrendo outras vezes ao auxílio do seu perigoso mentor, Lecter.
- A Aproximação à Caverna. Os testes que o herói enfrenta no seu percurso de obstáculos vão aumentando de dificuldade, e ele vai-se aproximando de uma caverna mais perigosa e obscura. Clarice sente isto na pele quando Buffalo Bill rapta uma nova vítima e Clarice tenta negociar com Lectera troca de informações vitais.
- A Prova Mais Dura. Em muitos mitos a caverna conduz a uma prova final em que o herói enfrenta um inimigo muito difícil e sente o aroma da derrota. É o seu momento mais negro, em que toda a sua coragem e tenacidade vão ser postas à prova. Para Clarice é o momento em que, após uma troca de informações com Lecter, que a obriga a mergulhar nas suas memórias mais dolorosas, é afastada da investigação por influência do traiçoeiro dr. Chilton.
- A Recompensa. Depois da prova mais difícil ser superada pelo herói este recebe algum tipo de recompensa – um elixir, uma espada mágica, uma capa com poderes especiais. Ou uma informação decisiva, como acontece com Clarice, que recebe de Lecter uma pista decisiva.
- O Caminho de Regresso. Munido da sua recompensa o herói inicia o regresso ao seu mundo ordinário. Clarice, apesar de afastada da investigação, vai continuar a investigar por conta própria graças à informação recebida de Lecter, e apesar de todos estarem a seguir a pista falsa que este dá a Chilton.
- A Ressurreição. O herói regressa ao mundo normal, munido da sua recompensa. Mas esta passagem não é simples, pelo contrário. Muitas vezes a sua ressurreição é marcada por um conflito final em que o herói tem de enfrentar uma última vez a morte e quase sucumbe, antes de se reerguer vitorioso. É o que se passa com Clarice, que tem de confrontar sozinha o serial killer Buffalo Bill, na escuridão da sua caverna subterrânea, e salvar a sua última vítima sem a ajuda de mais ninguém.
- O Regresso com o Elixir. A viagem do herói termina com o regresso do herói ao mundo ordinário, mas transformado pela aventura que viveu. Essa transformação pode ser simbolizada pelo elixir ou artefacto mágico que ele trouxe do mundo especial, ou pode ser simplesmente a informação e experiência que ele acumulou na viagem. O Silêncio dos Inocentes termina com Clarice de novo na Academia do FBI, onde festeja a sua passagem a de estudante a Agente Especial.
Fazendo uma adaptação livre do texto do memorando original de Vogler, podemos dizer que o Herói é apresentado no seu MUNDO NORMAL onde recebe um CHAMADO À AVENTURA. Primeiro fica RELUTANTE mas após o ENCONTRO COM O MENTOR decide-se a ATRAVESSAR O PRIMEIRO LIMIAR para o mundo especial onde encontra diversos TESTES, ALIADOS E INIMIGOS. Finalmente atinge a CAVERNA MAIS FUNDA onde enfrenta A PROVA MAIS DURA. Aí conquista A RECOMPENSA com a qual inicia O CAMINHO DE REGRESSO ao mundo ordinário, onde finalmente RENASCE transformado pela viagem e detentor de um ELIXIR com o qual beneficiará esse mundo.
Os Arquétipos
Ao longo da descrição da viagem do herói fomos encontrando sucessivas referências a determinados personagens com padrões de comportamento comuns que aparecem nas tradições narrativas de todas as épocas e civilizações — fábulas, lendas, contos tradicionais, textos mitológicos, tradições orais, etc.
São o que o psiquiatra Carl Jung designou como arquétipos.
O Herói, obviamente, é um arquétipo, tal como o são o Mentor, o Arauto, o Guardião, a Sombra, o Mutante e o Impostor, entre muitos outros.
Já abordei os arquétipos num artigo anterior deste curso, por isso não me vou debruçar aqui sobre eles, mas o seu estudo é uma componente essencial para quem queira analisar as narrativas dramatúrgicas sob uma perspectiva mítica.
Comparação da Viagem do Herói com o Paradigma
Para terminar gostaria de fazer um pequeno exercício de comparação da estrutura da viagem do herói com o padrão do paradigma que analisámos nos artigos anteriores deste curso.
Podemos assim dizer que a Chamada para a Aventura corresponde ao Inciting Incident do paradigma.
A Passagem do Primeiro Limiar será o 1º Ponto de Viragem, que marca a entrada no segundo ato.
Todos os Testes, Aliados e Inimigos, conduzindo à Aproximação à Caverna Mais Funda correspondem ao desenvolvimento dramático do conflito no segundo ato.
A Prova Mais Difícil, essa, será o equivalente ao 2º Ponto de Viragem, que marca a transição para o terceiro ato.
Por fim, a Ressurreição corresponderá ao Clímax do paradigma, e o Regresso com o Elixir à sua Conclusão ou dénouement.
Fazer esta análise paralela em filmes tão diferentes como Juno, Rain Man, Matrix. Star Wars, Shakespeare in Love, Chinatown, Little Miss Sunshine ou Witness, por exemplo, é um exercício interessante que aconselho a todos os estudiosos de guionismo.
Em alguns casos vamos encontrar semelhanças muito grandes, noutros diferenças igualmente esclarecedoras.
Em última instância esse exercício chama-nos a atenção para a existência de alguns padrões narrativos naturais, comuns a muitas estórias diferentes.
Conhecer bem esses padrões, nem que seja para os transgredir de acordo com as imposições das nossas estórias, é uma necessidade para todos os guionistas.
Quantas mais ferramentas tivermos na nossa caixa mais flexibilidade e segurança teremos para enfrentar o desafio sempre renovado que é escrever um guião.
RT @joaonunes: Novo artigo do meu Curso de Guião, dedicado à Viagem do Herói: http://t.co/QxQznWr2
RT @joaonunes: Novo artigo do meu Curso de Guião, dedicado à Viagem do Herói: http://t.co/QxQznWr2
Nao poderia deixar de comentar a respeito da jornada do heroi, que é tao comentado no meio dos roteirista, que tua origem na verdade nao neste tipo de mito citado aquim mas em outros tipos de herói, criado por V. Propp, o sujeito que analisou a jornada do heroi nos contos maravilhosos russos, que criou uma escala de funcao para cada personagem, (o heroi e o vilao) e estruturou pela primeira vez o ato de narrar. Veio de Propp toda uma analise da linguagem do texto atraves das estruturas e de seus personagens aplicadas por Bhartes, por exemplo, e tantos outros estudiosos das teorias da ficção. E muito bem aproveitada pelos roteiristas.
Obrigado pelo comentário e referências.
Pingback: João Nunes | guião | Curso #25: As estruturas alternativas do guião - parte um | argumento, Curso de guião, curso de guión, curso de roteiro, guião, roteiro, técnica |
Pingback: JOÃO NUNES | A Viagem do Herói | Infografismo sobre a Viagem do Herói | argumento, escrita, guião, infografismo, roteiro, técnica, viagem do herói |
Pingback: JOÃO NUNES | Dune | Grandes Diálogos: Nós peneiramos pessoas, de “Dune” | grandes diálogos, roteiro, argumento, escrita, técnica, filmes, guião |