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Curso #25: As estruturas alternativas do guião – parte um

    A verdade é que, tanto para os romances como para os filmes, 75% das estórias que queremos contar funcionam melhor do ponto de vista dramático se forem contadas de forma linear. Mas há os outros 25%, aquelas que podem ter maior ressonância dramática se forem narrados de forma não linear. E acho que tanto Reservoir Dogs como Pulp Fiction ganharam muito mais impacto ao ser narrados dessa forma, mais livre.

    Quentin Tarantino, no programa “The Charlie Rose Show”

    Nos artigos anteriores deste curso de guião abordei essencialmente o modelo clássico de estrutura narrativa, herdado de Aristóteles e teorizado por figuras como Syd Field e Robert McKee.

    Este modelo serve de base à grande maioria dos filmes da “indústria” do cinema – como Argo, que ganhou o último Oscar de Melhor Filme – mas também a muitos filmes do chamado cinema “independente” ou “de autor” – como Amour, que ganhou o Melhor Filme Estrangeiro.

    É importante que um guionista conheça perfeitamente o modelo clássico, pois sem essa base não terá as noções mínimas para sobreviver profissionalmente. Tarantino dominou as convenções da escrita de cinema estudando milhares de filmes, bons e maus, antes de as subverter em guiões como Kill Bill ou Pulp Fiction.

    Contudo, é óbvio que o modelo clássico não esgota as possibilidades da dramaturgia cinematográfica. No artigo anterior do Curso vimos uma das alternativas mais populares, a Viagem do Herói.

    Mas há muitas outras opções à nossa disposição para modelar e desenvolver as nossas estórias. Estudar essas variantes estruturais, que fogem do modelo clássico de guião, é a melhor forma de enriquecer a caixa de ferramentas de que dispomos como guionistas e garantir que encontraremos sempre a estrutura mais adequada para cada estória.

    Uma revisão rápida

    No seu livro Story, (encontre-o aqui em versão espanhola para o Kindle, El Guión, por um preço muito atractivo, menos de 10 dólares) Robert McKee organiza as várias opções narrativas num triângulo – o Triângulo da Estória – em que cada vértice corresponde a um modelo diferente.

    O Archiplot, ou Arquitrama, é o modelo dramático clássico, que temos vindo a estudar. Engloba filmes que vão desde The Great Train Robbery e O Couraçado Potemkin até O Padrinho, Indiana Jones ou Juno.

    O Miniplot, ou Minitrama, é essencialmente uma variação minimalista do Arquitrama, em que os mesmos elementos, ou parte deles, aparecem suavizados ou desdramatizados. Refere-se a filmes como A Paixão de Joana d’Arc, Morangos Silvestres ou Lost in Translation.

    O Antiplot, ou Antitrama, por outro lado, caracteriza-se pela negação radical ou subversão dos elementos essenciais da Arquitrama. É menos usual e inclui obras como Un Chien Andalou, Fellini 8 1/2 e Mulholland Drive.

    triângulo da estória net

    Esta caracterização não está errada, mas parece-me generalista demais, e não dá grandes pistas quanto à exploração desses caminhos alternativos.

    Proponho assim outra forma de organizar os modelos estruturais alternativos, que também parte de um conceito de Robert McKee – a sua definição do modelo narrativo clássico:

    O MODELO CLÁSSICO implica uma estória construída em volta de um protagonista ativo que luta principalmente contra forças externas antagonistas enquanto persegue um objetivo, através de um tempo contínuo, dentro de uma realidade fictícia coerente e relacionada causalmente, até um final fechado de mudança absoluta e irreversível. — Robert McKee em Story

    Este modelo tem que ter quatro elementos essenciais:

    • um protagonista activo;
    • um objectivo claro em disputa;
    • um tempo narrativo contínuo;
    • uma realidade ficcional coerente.

    A taxonomia que proponho divide as estruturas alternativas em função da forma como se afastam desta definição do modelo clássico. Teremos assim quatro grandes grupos de estruturas alternativas:

    • as que variam relativamente ao protagonista;
    • as que variam relativamente ao objetivo;
    • as que variam relativamente ao tempo;
    • e as que variam relativamente à coerência narrativa.
    estruturas alternativas net

    Esta forma de classificação foi influenciada por um artigo muito interessante da autoria de Charles Ramirez Berg, publicado na revista “Film Criticism”, com o título “A taxonomy of alternative plots in recent films: classifying the ‘Tarantino Effect’” – “Uma taxonomia dos enredos aternativos em filmes recentes: classificando o ‘Efeito Tarantino’”. Recomendo a sua leitura, embora me afaste um pouco da taxonomia que o autor propõe nesse artigo.

    Note-se ainda que estas variações estruturais podem ser combinadas de maneiras diferentes, aumentando ainda mais a complexidade da análise.

    Por exemplo, Pulp Fiction foge ao modelo clássico tanto em relação ao protagonista – tem vários – como em relação ao tempo – é narrado fora de ordem cronológica – e, de certo modo, até à coerência – certos aspectos da estória fogem a uma causalidade lógica estrita.

    Esta minha análise não tem pretensões de ser exaustiva, mas apenas de chamar a atenção para algumas estruturas dramáticas alternativas que em certos casos se poderão adaptar melhor ao guião que queremos escrever.

    Variações relativas ao protagonista

    Na definição do modelo clássico que vimos acima a estória é conduzida por “um protagonista activo”.

    Os filmes que se colam mais a este modelo centram-se apenas num protagonista único, e a trama principal da narrativa acompanhe a sua trajetória.

    Esse protagonista deve ser activo pois, aparentemente, as pessoas gostam de se projetar em personagens que tomam decisões, fazem escolhas, e agem em função dos seus objetivos.

    Sempre que um filme se afasta de uma destas características, afastamo-nos também do modelo clássico. Podemos assim distinguir alguns modelos alternativos.

    Dois protagonistas

    Em muitos filmes a condução da narrativa é da responsabilidade de dois protagonistas, e não só um. É o caso da maior parte das comédias românticas e dos chamados “buddy movies”.

    Em Pretty Woman, por exemplo, Vivian e Edward têm os seus objectivos próprios, as suas falhas e necessidades individuais, que em muitos aspectos são contraditórios e incompatíveis. O interesse da estória, portanto, passa por descobrir como é que esses objectivos podem ser conciliáveis.

    Já no caso de um “buddy movie” como Butch Cassidy and the Sundance Kid, 48 Hours ou Seven, os dois protagonistas funcionam como um só, com um mesmo objetivo e um enredo comum.

    São, nessa medida, muito semelhantes ao modelo clássico, podendo facilmente confundir-se com ele. A principal diferença nasce da dinâmica entre os dois protagonistas – tensões, choques, diferenças de perspectiva – que pode servir para enriquecer a narrativa.

    Vários protagonistas mas um só enredo

    Este modelo refere-se a estórias que são, basicamente, “buddy movies” com um maior número de protagonistas.

    Em Little Miss Sunshine toda a família partilha do sonho da pequena Olive se tornar miss. Em The Hangover os protagonistas têm de enfrentar juntos a tarefa de reconstituir os eventos da noite anterior até encontrarem o noivo “desaparecido”. Em Os Sete Samurais os sete protagonistas têm de colaborar para salvar a aldeia que se quotizou para contratar a sua protecção.

    Em todos estes casos os protagonistas funcionam como uma unidade, num enredo único com um objectivo partilhado. É assim um modelo essencialmente semelhante ao clássico. Tal como no caso dos “buddy movies” a riqueza adicional vem do potencial de tensão e choque entre os diversos protagonistas.

    Vários protagonistas e vários enredos convergentes

    São filmes em que há várias tramas paralelas, independentes e com importância equivalente, mas em que essas tramas convergem ou se cruzam em algum momento ou momentos da narrativa. É o caso de filmes como Crash, Magnolia, Pulp Fiction, Amores Perros ou Inglorious Basterds.

    Cada um destes filmes tem vários enredos que se desenvolvem em paralelo, cada qual com o seu protagonista próprio, com objectivos específicos e percursos mais ou menos independentes. No entanto, essas linhas narrativas acabam por convergir e se encontrar — parcialmente e em momentos diferentes, como em Crash, Pulp Fiction e Magnolia; ou em acontecimentos cruciais da estória, como em Amores Perros ou Inglorious Basterds.

    Esta estrutura, que hoje está muito popularizada, representa um desvio bastante acentuado em relação ao modelo clássico. Tavez por isso seja tão atractiva para os novos guionistas.

    Sempre que dei aulas de guião tive vários alunos que queriam desenvolver estórias segundo este modelo. O meu conselho era invariavelmente o mesmo: deviam começar por aprender a escrever segundo o modelo clássico.

    A razão é simples: se fizermos o exercício de analisar cada trama dos guiões acima citados em separado verificamos que normalmente respeitam os elementos do modelo clássico: têm um protagonista activo com um objectivo claro, obstáculos, tempo contínuo, realidade coerente.

    Ou seja, são várias estórias de modelo clássico, entrançadas numa única narrativa.

    Vários protagonistas e vários enredos independentes

    Nsta variante dramática os vários enredos são completamente (ou quase completamente) independentes entre si, mas vão sendo narrados em paralelo. Cada estória, com o seu protagonista e eixo narrativo independente, relaciona-se com as outras apenas por aspectos temáticos ou outro tipo de afinidade.

    É o caso de filmes como Trafic – várias estórias diferentes sobre a “guerra às drogas” na América; ou Babel, um conjunto de ensaios sobre a solidão humana.

    Também aqui, na maior parte dos casos, cada trama narrativa respeita o modelo clássico. O que diferencia esta estrutura é a forma como saltamos de um enredo para o outro, fazendo com que certos eventos funcionem como preâmbulo ou comentário aos eventos de outra trama narrativa, apesar de nada terem a ver de concreto com ela.

    Mudança de protagonista

    Nestes filmes, relativamente raros, fugimos mais radicalmente ao modelo narrativo clássico. São estórias em que começamos a acompanhar um protagonista mas a certa altura, por opção dramática, passamos a acompanhar outro completamente diferente.

    Em Psycho, por exemplo, a protagonista inicial morre a meio da estória. A partir daí passa a ser a sua irmã que conduz a narrativa. O mesmo acontece em Death Proof – o primeiro grupo de protagonistas é morto, o segundo tem um destino completamente diferente. O curioso é que em ambos os casos é o antagonista que funciona como elo de ligação entre as duas partes do filme.

    Já em The Shawshank Redemption a mudança é diferente. Durante todo o filme – primeiro, segundo e terceiro atos – o protagonista é Andy. Mas depois deste conseguir o seu objetivo – fugir da prisão – a estória passa a centrar-se em Red. Vamos então acompanhá-lo naquilo que passa a ser, na prática, um quarto ato completo, que só termina quando os dois protagonistas se reencontram.

    Um caso mais radical ainda é o de The Lost Highway em que, a meio da estória e sem qualquer justificação racional, o protagonista simplesmente se transforma num outro personagem, que passamos então a acompanhar.

    Divisão do protagonista

    Esta variante é talvez ainda mais rara, mas pode conduzir a situações interessantes. São filmes como Sliding Doors, The Family Man ou Back to the Future II, em que o protagonista se divide em determinado momento – por magia, viagem no tempo, ou simples opção dramática – e passamos a acompanhar versões alternativas da narrativa.

    Não é uma estrutura que se possa adaptar a muitas estórias, por isso o seu interesse é limitado.

    Protagonista passivo

    O modelo clássico prevê um protagonista activo. Mas alguns filmes têm conseguido fazer-nos interessar por protagonistas que não buscam ativamente os seus objectivos, sejam estes explícitos ou implícitos, e se deixam conduzir ao sabor dos acontecimentos.

    Isso é normalmente uma chave para o desastre, mas quando os autores têm a arte de fazer disso um estudo de personalidade rico e interessante, pode conduzir-nos a filmes excelentes como The Big Lebowski, Sideways ou The Remains of the Day.

    O caso de The Shawshank Redemption também é curioso: Andy parece ser um protagonista passivo, que de forma geral se deixa conduzir, mas acaba por se revelar um “falso passivo” quando finalmente descobrimos o objectivo que o moveu durante todos os seus anos de prisão.

    Conclusão

    No próximo artigo do Curso irei abordar os outros eixos desta minha abordagem às estruturas narrativas alternativas.

    Esta análise é um “work in progress” e tem com certeza muitas lacunas e inconsistências. A escrita não é uma ciência exata, como a matemática, e tentar teorizar sobre ela é sempre arriscado. Mas se conseguir deixar motivos de reflexão já será útil.

    Assim sendo, se tiver opiniões ou dúvidas em relação ao que aqui escrevi, deixe nos comentários abaixo.

    21 comentários em “Curso #25: As estruturas alternativas do guião – parte um”

    1. Informação relevante, sem duvida.
      Acabei há pouco tempo a leitura de “Story” de Robert McKee, e achei a teoria do triangulo pouco precisa e algo confusa, pois não nos dava a conhecer quais as estruturas possiveis dentro do miniplot e do antiplot.
      Obrigado por partilhar esta informação e parabéns pelo site.

    2. Terminei o artigo 25. E pela primeira vez assisti um filme lendo o roteiro. Na verdade é um filme baseado em um livro que eu também li. É um exercício cansativo, mas muito interessante. Trata-se de “Feliz Ano Velho”. Você conhece? Pretendo terminar agora o livro de Syd Field. Obrigada pelas dicas, seu blog é show!!!!!

    3. sou africano. e o meu sonho é chegar longe em matéria de longa metragem. Muito obrigado pelos artigos.

    4. Prezado João Nunes,

      Se este é o “Curso #25: As estruturas alternativas do guião – parte um”, onde posso encontrar a parte 2?

      Abraço,
      Renata

    5. Escrevi um livro de ficção ” A FUGA DO ESPELHO DA MORTE” estou pagando caro para transformar esse livro em roteiro de longa.
      Indicaram o seu curso, estou aqui batalhando e tentando ampliar tanto o meu conhecimento quanto melhorar as minhas escritas não só para os meus futuro livros, mas também para os futuros escopos de cinemas.
      O meu filme não enquadra no estilo nacional e por isso tem sido enorme as dificuldades para transforma – lo em um roteiro.
      Trata- se de uma fuga de uma prisão numa ilha no camerron dominada por militares franceses e os presos são na maioria estrangeiros.
      Dois irmãos irlandeses um ex combatente de um grupo radical e outro musico “violinista” irão. para esse inferno chamado Cadron.
      Por se tratar de uma produção carisma e poucos diretores neste gênero, talvez essa tenha sido a causa maior de tamanha dificuldade para conseguir êxito na realização deste projeto que tanto luto para se tornar real
      att: Newton Alves.

    6. Francisco Carlos Adriano

      Estou escrevendo 2 livros, já tinha as idéias prontas (inicio, meio e fim – como na estrutura clássica), mas tive muitas dificuldades em desenvolver as idéias. Fiquei muito satisfeito com esse curso, pois já posso montar de forma bem mais coerente as 2 histórias, inclusive como guião. Obrigadão e aguardo a continuação.

    7. caro João Nunes ,

      Os meus parabéns por este curso que me fez entender melhor as técnicas de escrita de um guião. Obrigado pela generosidade de disponibilizar tudo isto gratuitamente!

    8. Carmen Cibele Ferreira

      Trabalho de mestre essas aulas.Extremamente didático. Parabéns! E muito agradecida por esse incentivo.

    9. Já tinha lido Syd Field – Manual do Roteiro, Robert Mckee – Story entre outros, além de estudar vários roteiros famosos, então posso afirmar com toda certeza que este curso que concluir agora, 16/09/2018 – 16:47, me ajudou muito na compreensão de tudo que eu tinha lido a respeito foi o melhor que até agora. Além de recomendar, só tenho a agradecer.

    10. Nelson Bezerra Barbosa

      Prezado João,
      Terminei hoje a leitura das lições do curso, posso garantir que foram de grande valia. Material de excelente que fui complementando com leituras indicadas e outras que busquei por conta própria. Li o livro do Syd Field (roteiro – soluções problemas) e encomendei mais alguns sobre o tema. Estou fazendo um curso de cinema e estamos neste momento dando tratos a bola para uma ideia. Se não for abusar de sua paciência, gostaria de compartilhar minha ideia com você e ouvir críticas e sugestões.
      Fico aguardando a segunda parte desta lição.
      Um grande abraço
      Nelson Barbosa

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