Avançar para o conteúdo

O que é um “Deus ex Machina”?

    Lembra-se daquela cena de tensão no clímax de Parque Jurássico? Recordo-lhe: o doutor Grant e os dois miúdos estão cercados pelos temíveis velociraptors que se aprestam para dar o golpe final, numa situação que parece não ter solução possível. Mas a salvação surge de onde menos se espera: de um Deus ex Machina como mandam as regras.

    Veja como o guionista David Koepp escreveu essa cena no guião do filme, adaptado do livro de Michael Crichton (tradução minha):

    INT. ÁTRIO – DIA

    (…)

    O outro velociraptor está na porta, bloqueando o caminho.

    Grant e os miúdos congelam, sem nada com que lutar e sem ter onde se esconder.

    O raptor ASSOBIA e agacha-se numa posição de pré-ataque —

    — o outro raptor consegue erguer-se e agacha-se também —

    — e um SOM HORRÍVEL ecoa pelo átrio. Uma sombra escura cai sobre todos —

    — e uma cabeça maciça mergulha em cena. Um conjunto de mandíbulas de metro e meio agarra o raptor, dentes de quarenta e cinco centímetros cravam-se nos seus flancos, e o animal indefeso UIVA de agonia enquanto é levantado, levantado, levantado, do chão do átrio.

    Grant e os outros olham para cima atónitos, seguindo o raptor que sobe no ar, agora a seis metros do chão do átrio, segurado firmemente na boca do —

    — TYRANNOSAURUS REX! Este está na entrada do átrio em frente ao buraco enorme que rasgou na parede. Abana a sua enorme cabeça uma vez, PARTINDO o pescoço do velociraptor, e depois deixa-o cair, morto, no chão aos seus pés.

    (…)

    O tiranossauro é, neste caso, o Deus (R)ex Machina que referi mais acima.

    Perante esta explicação, um leitor mais confuso pode, eventualmente, perguntar…

    Mas que raio é um Deus ex Machina?

    O Deus ex Machina é um recurso narrativo em que um autor introduz um evento, coincidência, personagem, habilidade ou outro “truque” inesperado para resolver um problema que os protagonistas, normalmente, não iriam conseguir solucionar.

    Como tal, é frequentemente considerado um sinal de escrita preguiçosa, uma espécie de batota dramática que irá inevitavelmente diminuir a satisfação dos espectadores, fazendo-os sentir-se enganados por o autor ter arranjado uma saída fácil para uma situação complicada.

    No entanto, parece que os milhões e milhões de espectadores de Parque Jurássico (e também de O Regresso do Rei, O Feiticeiro de Oz, e tantos outros filmes com Deus ex Machina notórios), não se terão sentido ludibriados pelos seus finais, caso contrário não os teriam tornado em sucessos de escala mundial.

    Sendo assim, como ficam as coisas? O Deus ex Machina é um dos pecados capitais da escrita ou, pelo contrário, é apenas mais uma ferramenta ao nosso dispor?

    Como em quase tudo na arte da escrita, a questão não tem uma resposta única e óbvia.

    Tudo depende da habilidade do autor para tornar o Deus ex Machina dramaticamente aceitável e emocionalmente satisfatório para os espectadores.

    Um debate antigo

    O debate sobre o mérito ou demérito dos Deus ex Machina começou há alguns milénios, quase na mesma altura em que surgiu a própria expressão. Deus ex Machina quer dizer o Deus da Máquina e a frase tem origem no teatro grego clássico. Refere-se a algumas cenas finais de peças teatrais em que um ator era descido para o palco por uma grua mecânica (a Machina), interpretando um Deus que surgia miraculosamente para resolver os problemas do protagonista.

    A solução, espectacular no seu impacto, era do agrado dos espectadores e muito querida pelos autores, que a usavam liberalmente. No entanto, desagradava a Aristóteles, o primeiro pensador da dramaturgia, que a censurava abertamente: “É evidente que as soluções dos enredos devem resultar do próprio enredo e não de um artifício.”

    Isso é, para os seus críticos, o que ainda hoje caracteriza perfeitamente um Deus ex Machina: um artifício que não decorre naturalmente do enredo.

    Ou seja, o Deus ex Machina introduz na narrativa:

    • uma saída inesperada
    • para um problema premente e complicado
    • cuja solução parecia impossível
    • e que não depende das escolhas e ações dos personagens.

    Um Deus ex Machina pode apresentar-se das mais diversas formas, mas é possível destacar algumas categorias mais frequentes:

    • a aparição de um personagem que teve pouca ou nenhuma interferência na estória até ao momento;
    • ou esteve desaparecido, mas escolheu convenientemente aquele momento para regressar;
    • a revelação de uma habilidade ou capacidade desconhecida de um dos heróis;
    • ou, pelo contrário, de uma fraqueza inesperada dos seus adversários;
    • um fenómeno natural imprevisto;
    • uma coincidência improvável de eventos;
    • uma proeza tecnológica não previamente estabelecida;
    • o recurso a uma solução miraculosa explicada em linguagem pseudo-científica;
    • a revelação providencial de um facto decisivo;
    • uma mudança de comportamento pouco convincente de um personagem;
    • e finalmente, a intervenção de um ser divinal;
    • ou de outra entidade com poderes superiores e adequados.

    Exemplos

    Um dos Deus ex Machina mais criticado pelas audiências foi o que surgiu no final do terceiro filme da saga The Matrix, e a encerrou (temporariamente) com uma nota falsa. Após lutar contra o Agente Smith durante três filmes, Neo recorre a uma máquina (chamada… Deus Ex Machina) para finalmente conseguir derrotá-lo. Na altura deve ter parecido aos autores uma solução inteligente e cheia de meta comentários, mas na realidade foi uma desilusão para os muitos fãs do universo da Matriz.

    Pelo contrário, um exemplo bem humorado e bem conseguido de Deus ex Machina surge numa cena crucial do filme The Expendables 2. Num momento em que os heróis mercenários comandados por Sylvester Stallone estão cercados por um grupo mais numeroso e bem armado, e a sua derrota parece inevitável, surge do nada Chuck Norris que, sozinho, elimina todo o bando inimigo. Uma solução tão inesperada, improvável e gratuita só é aceitável porque é o filme que é – e Chuck Norris é Chuck Norris.

    Outro exemplo, mais antigo, de um Deus ex Machina que teria tudo para ter dado errado é o que marca a resolução de O Feiticeiro de Oz. No final de muitas aventuras e desventuras, a jovem heroína Dorothy descobre que lhe basta bater os calcanhares para ver concedido o desejo de voltar para casa. Se somarmos a isto o facto de, nas últimas cenas, ser sugerido que toda a estória não passou de um sonho, O Feiticeiro de Oz pareceria condenado ao fracasso. Mas o seu sucesso ao longo de várias gerações só prova que, como o guionista William Goldman gostava de dizer, “ninguém sabe nada”.

    Se os Deus ex Machina, tais como as coincidências, são geralmente de evitar, são ainda mais temíveis quando surgem no clímax e ajudam a definir a conclusão da estória. É o que acontece, por exemplo, em O Turista, uma comédia ligeira de ação completamente destruída por um final assente num descarado Deus ex Machina que parece explicar tudo, mas é completamente improvável.

    Termino com uma referência ao irmão malvado do Deus ex Machina, o Diabolus ex Machina, ou seja, o Diabo na Máquina. É a designação que podemos dar às situações em que a introdução inesperada de um personagem, habilidade, evento ou circunstância não vem melhorar a sorte dos heróis, mas pelo contrário piorá-la, de uma forma igualmente injustificada e pouco plausível.

    Um exemplo deste Diabolus ex Machina em ação surge no perturbador final do filme francês Para a minha irmã, em que um psicopata saído do nada (e, se bem me recordo, apenas vagamente referido durante o filme), vem terminar em absoluta desgraça as férias da tímida e desajeitada protagonista.

    Conclusão

    Não sei se podemos considerar o Deus ex Machina uma ferramenta dramática ou um erro de escrita. Mas a verdade é que nesta arte da ficção dramática não há, verdadeiramente, regras intocáveis, por mais que o Aristóteles e muitos outros teóricos assim o entendam.

    Na estória certa, reunidas as circunstâncias adequadas, e nas mãos de um autor talentoso que soube agarrar e transportar consigo desde o início ao fim os leitores/espectadores, um bom Deus na Máquina pode proporcionar uma conclusão tão satisfatória como qualquer outra.

    Mas se estas condições não estiverem todas reunidas, talvez seja mais prudente mantermo-nos afastados deles e procurar concluir as nossas estórias com soluções que surjam por mérito (ou demérito) dos nossos protagonistas.

    Para saber um pouco mais sobre os Deus ex Machina, veja este excelente vídeo:

    Deixe um comentário

    O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

    This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.