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Ferramentas do guionista: A ironia dramática

    Após fazer uma revisão dos temas já abordados aqui no blogue, cheguei à conclusão de que nunca falei de uma das mais importantes ferramentas dos guionistas: a ironia dramática.

    É verdade que já abordei o tema, indirectamente, num artigo do curso, quando escrevi sobre a gestão de informação. Mas a ironia dramática é uma ferramenta suficientemente importante para merecer um tratamento mais detalhado.

    O que é a ironia dramática

    Utilizamos a expressão ironia dramática para designar todas as situações em que a audiência sabe mais do que pelo menos um dos personagens. Por vezes, mais do que todos os personagens.

    O exemplo mais clássico, referido por Alfred Hitchcok, é o da bomba debaixo da mesa. Se tivermos um grupo de pessoas à volta de uma mesa e uma bomba explodir debaixo dela, sem aviso, estamos a explorar o efeito de surpresa. Mas se anteriormente tivermos mostrado a bomba à audiência, essa ironia dramática passa a ser fonte de tensão e suspense. Os espectadores sabem que a bomba está lá, podendo explodir a qualquer momento, e essa diferença de nível de informação gera um tipo de tensão dramática que, para Hitchcok, era sempre superior à mera surpresa.

    Mas a ironia dramática não serve apenas para gerar tensão e suspense; pode ser usada com grande efeito para provocar uma enorme gama de emoções.

    Um exemplo perfeito é o final de Romeu e Julieta de William Shakespeare. Julieta simula a própria morte, tomando uma poção que a mergulha num sono profundo, mas essa informação não chega a Romeo. Este, pensando que a sua amada está realmente morta, suicida-se. E a audiência, da peça ou dos filmes, que sabe tudo o que se está a passar, assiste impotente ao desfecho trágico da estória, num exemplo sublime de ironia dramática.

    É também possível usar a ironia dramática para gerar humor, como inúmeras peças de teatro e filmes provam abundantemente. No filme Zombieland, por exemplo, os quatro protagonistas invadem a casa do ator Bill Murray, em Hollywood, pensando que ele estará morto. Dois deles, Tallahassee e Wichita, encontram Bill Murray (fazendo de si mesmo), ainda vivo e disfarçado de zombie para poder andar à vontade entre os mortos-vivos. O ator decide então pregar uma partida aos outros dois, Columbus e Little Rock, que estão a ver um filme no home theater da enorme mansão. Aparece-lhes de surpresa, com o seu perfeito disfarce de zombie, com a intenção de os assustar. Infelizmente, Columbus (Jesse Eisenberg) é mais rápido a puxar o gatilho do que a perceber a ironia dramática em curso. O resultado, hilariante, não é bom para Bill Murray.

    O funcionamento da ironia dramática

    Para que a ferramenta da ironia dramática seja bem explorada devemos prever três etapas no nosso guião: a sua introdução, exploração e revelação.

    Vejamos o funcionamento no exemplo anterior: num primeiro momento, de introdução, Tallahassee e Wichita encontram Bill Murray. A audiência fica a saber que ele está vivo, mas Colombus e Little Rock não o sabem. Diz-se, neste caso, que estes dois são as vítimas da ironia dramática.

    Num segundo momento, de exploração, os guionistas Rhett Reese e Paul Wernick tiram o melhor partido da situação. Enquanto dois dos personagens confraternizam com Bill Murray, os outros dois falam dele como falecido.

    A exploração desta ironia dramática continua quando Bill Murray aparece de surpresa, pregando um susto a Columbus e Little Rock. Como estes não sabem que Bill Murray está vivo, reagem como fariam perante qualquer outro zombie – disparando contra ele. É desta consequência inesperada que nasce o humor de toda a situação.

    A revelação vem logo de seguida quando Columbus percebe, face à reacção de Tallahassee e Wichita, que não foi um zombie que acabou de abater, mas sim o verdadeiro Bill Murray, de quem era fã.

    A cena obrigatória

    O momento de revelação em que a vítima da ironia dramática recebe a informação que lhe faltava e vê a luz é normalmente bem aproveitada pelos cineastas. A esta cena alguns autores, como Yves Lavandier, no livro A Dramaturgia, chamam mesmo de cena obrigatória.

    A justificação para a sua obrigatoriedade é que a audiência, perante uma situação de ironia dramática, espera sempre com antecipação o momento em que as vítimas recebem a informação crucial. Se esse momento não chegar, ou se não for bem apresentado, o público sente-se defraudado.

    Isto não é cem por cento verdade. Há situações em que a cena obrigatória não só não é obrigatória (perdoem-me o trocadilho) como até estragaria a estória.

    Por exemplo, que interesse teria o citado Romeo e Julieta se Shakespeare tivesse incluído uma cena obrigatória em que o protagonista recebesse a informação a tempo de evitar o suicídio? Seria um final mais feliz, com certeza, mas não seria o fim emocionante que tão bem tem resistido aos séculos.

    Vejamos outro exemplo, ainda mais radical. O filme Citizen Kane – O Mundo a Seus Pés, que muitos consideram o melhor filme de sempre, termina com uma ironia dramática que é apenas apresentada, nunca explorada e muito menos concluída.

    A estória acompanha a investigação jornalística sobre o significado da palavra Rosebud, que o milionário Charles Foster Kane profere no seu leito de morte. Através de uma série de testemunhos de diferentes pessoas vamos construindo o puzzle da vida do magnata, mas em momento nenhum os jornalistas obtém a explicação do significado de Rosebud. Esta explicação surge apenas para o espectador, e nos momentos finais do filme: era o nome do trenó de neve que Kane tinha recebido de presente, em criança, num dos seus poucos momentos de felicidade.

    Esta introdução sem conclusão é apesar de tudo satisfatória porque incentiva uma exploração em reverso. O espectador recorda a cena do trenó, e isso permite-lhe entender e tirar prazer adicional do filme. O resultado teria sido imensamente diferente se os jornalistas tivessem descoberto o significado da palavra, ou se o trenó não tivesse sido apresentado no início do filme.

    Citizen Kane

    Duração da ironia dramática

    Uma ironia dramática pode durar um filme inteiro, estender-se por uma sequência de cenas, ou começar e terminar em segundos.

    Em Animais Nocturos, por exemplo, no clímax do filme vemos o antagonista agarrar numa arma sem que o protagonista o perceba. Esta informação é introduzida, explorada e concluída em menos de um minuto.

    Em Café Society os três personagens centrais vêem-se envolvidos numa dupla ironia dramática que se prolonga por toda uma sequência do filme. Bobby está apaixonado por Vonnie, mas esta tem um namorado. A certa altura descobrimos que esse namorado é Phill, o tio rico e casado de Bobby. Começa a primeira ironia dramática, em que Bobby é a vítima.

    Mais tarde, Phill, que não quer acabar o seu casamento, termina com Vonnie, e esta começa finalmente a namorar com Bobby. Como Phill não sabe desse namoro, passa a estar em jogo uma segunda ironia dramática, em que ele é a vítima.

    No entanto Phill não consegue viver sem Vonnie e acaba por confessar a Bobby as saudades que tem da sua ex-amante. Bobby, por sua vez, fala com Phill sobre a felicidade que sente com a sua nova namorada. A conversa é riquíssima porque nenhum dos dois sabe que estão a falar da mesma mulher. Com mão de mestre Woody Allen explora em simultâneo as duas ironias dramáticas.

    Esta mesma cena serve também de conclusão para a segunda ironia, no momento em que Phill percebe que a namorada de Bobby é a mesma Vonnie por quem ele continua apaixonado. Como Phill não revela isso a Bobby, a primeira ironia dramática continua em jogo. Vai ser dramaticamente explorada quando Bobby, numa conversa com Vonnie, lhe revela que o tio continua apaixonado pela ex-amante. Esta informação será crucial mais tarde.

    Finalmente, a primeira ironia dramática é concluída quando Bobby vê no gabinete do tio uma carta emoldurada de Rudolfo Valentino, carta essa que Vonnie tinha referido antes ao falar do seu ex-namorado.

    Toda esta sequência é muito gratificante para o espectador pois só ele tem todas as peças de informação, sabendo mais do que qualquer um dos personagens do filme. É um caso em que as cenas obrigatórias são mesmo obrigatórias.

    Finalmente, um exemplo retirado do livro de Lavandier acima mencionado: o filme Tootsie, que teve um enorme sucesso em 1982. Michael Dorsey (Dustin Hofman) é um ator que se disfarça de mulher – Dorothy Michaels – para conseguir um papel numa telenovela popular e encontra nesse papel o sucesso que nunca conseguiu em nome próprio.

    Essa ironia dramática gigantesca dura todo o segundo e terceiro atos do filme e é explorada de inúmeras maneiras. Por exemplo, um outro ator da telenovela sente-se imensamente atraído por Dorothy sem saber que ela é um homem. E o próprio Michael apaixona-se por Julie, uma atriz da novela, mas não o pode revelar sem pôr em perigo a sua identidade falsa.

    É pois natural, perante uma ironia dramática tão intrínseca à estória, que o clímax de Tootsie seja precisamente a conclusão da ironia: numa cena memorável Dorothy revela a sua verdadeira identidade, extendendo a todos os personagens o que a audiência sabe desde o início.

    Conclusão

    A ironia dramática é uma das ferramentas mais poderosas no arsenal do guionista. Praticamente todos os filmes a utilizam, de uma forma ou de outra, e é uma peça estrutural da narrativa de muitos deles.

    Como todas as ferramentas, pode ser bem usada e mal usada. O único limite é a imaginação do guionista.

    No seu próximo guião, veja que oportunidades tem para aplicar a ironia dramática, e como pode explorar da melhor maneira os seus três momentos chave. E não esqueça a cena obrigatória… que pode ser opcional.

    1 comentário em “Ferramentas do guionista: A ironia dramática”

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