O freeze frame, que em português pode ser designado por imagem congelada, é uma técnica cinematográfica usada com bastante frequência desde 1928, ainda no tempo do cinema mudo, altura em que Alfred Hitchcock a terá estreado no filme Champanhe. Depois disso foi explorada de formas cada vez mais inventivas ao longo dos anos.
A imagem congelada/freeze frame consiste, como o nome dá a entender, no congelamento temporário de uma cena que, através da repetição de uma única imagem (frame) ao longo de um certo período, se converte numa espécie de registo fotográfico desse momento específico.
Vejamos dois exemplos famosos: os finais dos filmes Os 400 Golpes, de 1959, e Rocky, de 1976.
É importante destacar que nenhum destes freeze frames estava especificado no guião dos filmes, escritos respectivamente por François Truffaut e Marcel Moussy, no primeiro caso, e por Sylvester Stallone, no segundo.
No guião de Os 400 Golpes lia-se apenas 1:
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Plano americano sobre Antoine que seguimos demoradamente num travelling lateral traseiro. Ele corre sem nunca diminuir de velocidade. Depois de passar por um painel de sinalização, começa uma longa corrida ao longo da estrada. O travelling traseiro torna-se lateral. Ao fundo, os campos e as quintas. Fusão.
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O de Rocky, pelo seu lado, não dava qualquer indicação técnica para o final:
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Ainda suspenso no ar, Rocky inclina-se e Adrian salta e os dois abraçam-se.
ADRIAN
Amo-te — amo-te — amo-te…
Os dois são arrastados juntos na maior noite que alguém pode recordar…
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Muitos outros freeze frames já estão escritos nos guiões dos filmes, como veremos em alguns dos exemplos que se seguem. Mas alguns dos mais famosos, como os que aparecem em Os 400 Golpes, Rocky, Thelma e Louise, Trainspotting, Romance Perigoso ou inúmeros outros filmes, nasceram de decisões posteriores à escrita.
Percebe-se assim que o uso da imagem congelada é, em última instância, uma decisão do realizador, com o editor do filme.
O guionista pode sugeri-la no guião, se isso for dramaticamente justificável ou contribuir de alguma forma para a narrativa. Deve, contudo, fazê-lo com parcimónia. O mesmo é recomendado, aliás, em relação a outros tipos de indicações que são mais da esfera da realização ou edição: transições, planos, enquadramentos, movimentos de câmara, etc.
Como usar a imagem congelada – freeze frame
A técnica cinematográfica da imagem congelada é normalmente utilizada para destacar algum momento especialmente significativo da ação.
No primeiro exemplo, Truffaut usou-a para terminar Os 400 Golpes de uma forma simultaneamente simbólica e ambígua. A praia e a extensão do mar remetem-nos para valores como o futuro ou a liberdade, mas a expressão congelada de Antoine pode ser entendida de muitas maneiras, tantas como os diversos destinos que ele poderá ter.
O caso de Rocky é quase o oposto do anterior: o congelamento da imagem serve para realçar a importância da vitória, que Rocky faz questão de celebrar com Adrian. Desta forma não restam quaisquer dúvidas em relação ao futuro dos dois.
O freeze frame pode pois ter diversos objetivos, intenções e significados, conforme os momentos e as formas como é usado.
Vejamos alguns exemplos práticos, retirados de guiões em que a imagem congelada foi escolhida intencionalmente pelos guionistas durante a fase da escrita, como forma de dar ênfase a momentos especiais da dramaturgia.
Introdução de personagens
Uma das aplicações mais frequentes desta técnica é para apresentar um personagem importante ou dar informação adicional sobre ele.
Um dos primeiros exemplos deste uso está no guião do filme Eva/All About Eve de 1950, da autoria do grande Joseph Mankiewicz.
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Os aplausos continuam sem interrupção. EVA vira-se agora, e move-se graciosamente em direção ao Ator Envelhecido. Avança por entre damas e cavalheiros que aplaudem; as lâmpadas de flash continuam a estalar…
Conforme se aproxima do seu objetivo, o Ator Envelhecido vira-se para ela. Estende o prémio. A mão dela avança na sua direção. Nesse preciso momento – com o prémio quase ao alcance da ponta dos dedos – A IMAGEM TRAVA. A AÇÃO PÁRA. O SOM PÁRA.
VOZ DE ADDISON
Eva. Eva, a Menina de Ouro. A menina das capas de revista, a menina da casa do lado, a menina na lua… O Tempo (a revista Time) foi bom para Eva, a Vida (a revista Life) vai para onde ela vai – ela foi revista, coberta, revelada, reportada, o que come e quando e onde, quem ela conhece e onde estava e quando e para onde vai…
ADDISON parou de aplaudir, está inclinado para a frente, olhando fixamente para Eva… a sua narração continua sem interrupção.
VOZ DE ADDISON
…Eva. Vocês já sabem tudo acerca de Eva… o que poderia haver para saber que vocês não saibam…?
Conforme ele se inclina para trás, os APLAUSOS REGRESSAM GRADUALMENTE tão tumultuosos como antes. O olhar de Addison move-se lentamente de Eva para Karen.
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A indicação da imagem congelada não podia ser mais explícita do que aqui: “A IMAGEM TRAVA. A AÇÃO PÁRA. O SOM PÁRA.”
Pelo contrário, o regresso do movimento é deixado mais em aberto. O guionista sabe onde quer fazer a pausa, mas delega ao realizador a decisão de onde a interromper. Dá, no entanto, uma dica, com a indicação “OS APLAUSOS REGRESSAM GRADUALMENTE”.
Vejamos agora como isso é feito no guião de um filme mais recente, Ratatouille, escrito por Brad Bird a partir de uma estória original de Jan Pinkava, Jim Capobianco e Brad Bird.
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Estamos perto da JANELA agora, quando ela é subitamente ESTILHAÇADA por um LIVRO DE COZINHA. Instantaneamente a ação CONGELA. Debaixo das suas páginas esticadas, protegendo-se das lascas de vidro quebrado está, inexplicavelmente, um RATO – REMY. Ele é magro e ossudo, assustado, quase cómico. É difícil não sentir simpatia por este pequenito.
REMY (V.O.)
Este sou eu. Penso que é aparente que preciso de repensar um pouco a minha vida. Qual é o meu problema? Em primeiro lugar —
.FORA DA CASA DA QUINTA – ENTARDECER – SEMANAS ANTES
Uma SILHUETA sai como uma seta de trás de um barril de madeira, pausando contra um da cor do sangue. Sarnento, sinistro, o oposto de Remy. É assim que a maior parte dos humanos vê os RATOS.
REMY (V.O., CONT’)
–sou um rato. O que significa que a vida é dura.
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Um pouco mais à frente, ainda em Ratatouile, outro personagem é apresentado da mesma maneira.
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Uma vez mais a AÇÃO CONGELA.
REMY (V.O.)
Este é Emile. O meu irmão. Deixa-se impressionar com facilidade.
RETORNO À AÇÃO: Um rato mais velho, DJANGO, aparece em campo.
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Em ambos os casos o início do freeze frame é dado de forma explícita: “A AÇÃO CONGELA”.
Mas veja-se uma diferença importante: no 1º caso, o retomar da ação fica implícito com a mudança de cena indicada por um novo Cabeçalho. No segundo, em que continuamos na mesma cena, Brad Bird indica-o explicitamente com a direção “RETORNO À AÇÃO:” .
Guy Ritchie, no guião de Um Mal Nunca Vem Só/Lock, Stock, and Two Smoking Barrels usa o freeze frame para dar mais alguma informação sobre dois personagens apresentados pouco antes.
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A expressão de Bacon muda dramaticamente. Uma série de crash zooms entre ED, Bacon e os olhos de uma terceira figura (o polícia) mostram que há um problema. Aí vão eles: EDDY e BACON correm como quem já fez isto antes. Mergulham numa viela; Ed salta umas escadas, e congelamos.
BACON
(voice-over)
O Ed corre depressa, fala depressa, come depressa, e joga cartas depressa, mas é lento como o caraças para detectar os chuis.
EDDY
(voice-over)
A razão porque lhe chamam BACON é que passou tanto tempo da sua juventude na esquadra da polícia que as pessoas já pensavam que era um deles. Mas agora já é crescidinho e está na altura de seguir em frente.
Cortamos para um plano de Ed a aterrar. Ganhou um bom avanço.
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Neste caso, o guião indica a imagem congelada apenas na descrição da ação, sem lhe dar um destaque especial. O mesmo acontece para o fim do freeze. Note-se, no entanto, que Guy Ritchie, além de guionista, foi também o realizador do filme. Como tal estava a escrever para si próprio, o que lhe dá alguma liberdade.
Exposição
A imagem congelada pode servir também para criar uma pausa no filme permitindo dar alguma informação importante – o que normalmente se designa por exposição.
Vejamos dois exemplos. O primeiro é um caso de exposição pura, destinada a explicar uma dinâmica familiar; o segundo tem um ênfase mais temático. Ambas as cenas são retiradas do guião de Goodfellas, de Nicholas Pileggi e Martin Scorcese.
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CARMELLA grita. HENRY encolhe-se. O PAI DE HENRY continua a bater-lhe.
CLOSE NO ROSTO DE HENRY
CONGELA EM AÇÃO NO ROSTO DO PAI DE HENRY
HENRY (V.O.)
O meu pai estava sempre lixado. Lixado por ter de trabalhar tanto. Lixado por ganhar tão pouco. Lixado por sermos sete a viver numa casa minúscula. Mas ao fim de algum tempo, estava principalmente lixado por eu estar sempre na praça de táxis. Dizia que eles eram uns vagabundos e que eu era um vagabundo. Dizia que eu ia meter-me em sarilhos. Eu costumava dizer que fazia só uns recados depois da escola, mas ele não se deixava enganar. Sabia o que se passava na praça de táxis e, de vez em quando, geralmente depois de beber uns copos, eu tinha de apanhar uma tareia. Mas nessa altura já nem ligava. Não importa a porrada que apanhasse, já não ouvia nada do que ele tinha a dizer. Acho que nunca ouvi. Como eu vejo as coisas, toda a gente tem de apanhar umas porradas de vez em quando.
DESCONGELA e a tareia continua.
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Mais à frente, numa das cenas mais memoráveis do filme, o freeze frame é usado para expor com clareza o tema de Goodfellas – a sedução e importância do respeito.
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CONGELA na silhueta de HENRY contra a escuridão como um homem no inferno.
HENRY (V.O.)
Um dia uns miúdos da vizinhança carregaram as compras da minha mãe da mercearia até casa. Foi uma prova de respeito.
CORTA PARA:
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Em ambos os casos os autores são muito claros na indicação do início (“CONGELA”) e no fim (“DESCONGELA” ou “CORTA PARA:”) da imagem congelada.
Vejamos um último exemplo de freeze frame para exposição, que até já referi noutro artigo do blogue. Este é retirado do guião de A Queda de Wall Street/The Big Short, escrito por Charles Randolph e Adam McKay.
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A cena congela.
NEGOCIANTE MODERNO (V.O.)
Valores mobiliários garantidos por hipotecas, empréstimos subprime, parcelas… É muito confuso, certo? Está a sentir-se enfadado? Ou estúpido? Bom, o objetivo é mesmo esse. Os tipos da Bolsa de Valores adoram usar termos confusos para fazer-nos pensar que só eles podem fazer o que fazem. Ou, melhor ainda, para nós não lhes fodermos o juízo. Por isso, aqui está a Scarlett Johansson debaixo de uma CASCATA para explicar tudo…
EXT. PEQUENA CASCATA – DIA
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No filme não tivemos a Scarlett Johansson numa cascata, mas sim a Margot Robbie numa banheira, o que também não é mau.
Voltando ao tema: o importante é perceber que, uma vez mais, a indicação do freeze frame foi dada explicitamente na descrição de Ação e o seu fim ficou implícito na mudança de cena.
Finais
Como vimos nos dois primeiros exemplos escolhidos, o freeze frame é muito usado para terminar filmes ou episódios televisivos. Nesses casos específicos, o seu uso não estava previsto nos guiões. Vejamos agora dois exemplos em que estava.
No primeiro exemplo, retirado do guião de Dois Homens e Um Destino/Butch Cassidy & The Sundance Kid de William Goldman, a imagem congelada é usada de uma forma magnífica, como forma de preservar um momento trágico para a eternidade.
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.CLOSE UP – BUTCH AND SUNDANCE
A CÂMARA CONGELA-OS. E conforme o faz, uma tremenda fuzilada de tiros é ouvida, e depois outra, ainda mais alta, e mais e mais tiros, aumentando de ritmo e de volume. Os tiros continuam a ouvir-se. Butch e Sundance continuam congelados.
!FADE OUT FINAL
_FIM_
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Não se pode dizer que o final seja ambíguo – o destino de Butch e Sundance é claro. Mas ao escolher privar o espectador da visão da morte dos dois protagonistas, William Goldman colocou o foco, de certa forma, em tudo o que vimos antes – a sua coragem, humor, inteligência e lealdade – e retirou um pouco do amargo do seu inevitável fim.
Para segundo exemplo escolhi o final do guião de À Prova de Morte/Death Proof, de Quentin Tarantino. É um filme menor do autor, mas selecionei-o porque mostra outra forma de usar um final em imagem congelada – uma forma não genuína e emocional, como William Goldman faz, mas referencial e irónica, como tanto do que Tarantino escreve.
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Quando bate no asfalto vermelho, o Stuntman Mike já era.
E no momento em que atinge o chão, com as três raparigas sobre si…
O FILME CONGELA como um clássico do kung fu que acaba com o golpe de morte.
Uma Legenda Branca Foleira com “FIM” surge no ecrã.
E, sem mais nada a acrescentar, “Death Proof” termina.
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Veja-se como, em ambos os casos, e apesar das intenções radicalmente diferentes, os autores são explícitos na indicação técnica da imagem congelada: “A CÂMARA CONGELA-OS” e “O FILME CONGELA”.
Conclusão
Em resumo:
- O uso da imagem congelada/freeze frame é, em última instância, uma decisão do realizador.
- Pode no entanto ser indicado logo no guião, se isso for dramaticamente justificável.
- A indicação do início de um freeze frame deve ser sempre explícita, mas não há uma forma única de o fazer.
- Podem usar-se expressões como “CONGELA”, “A AÇÃO CONGELA”, “O FILME CONGELA” ou outras de igual teor.
- A indicação do fim do freeze frame pode ser implícita através da mudança de cena.
- Ou pode ser explícita, pelo uso de expressões como “DESCONGELA”, “O FILME DESCONGELA, “RETORNO À AÇÃO” ou outras semelhantes.
Não posso deixar de lançar um alerta antes de terminar. O uso frequente do freeze frame, especialmente como solução para os finais dos filmes, levou a um certo cansaço dos espectadores em relação a essa técnica. Mas há seguramente uma miríade de opções disponíveis para lhe conferir frescura e novidade.
Tarantino tentou fugir desse cansaço, usando o freeze frame de um modo irónico. Mas, como se pode ver no exemplo de A Queda de Wall Street, há ainda formas genuínas e intencionais de recorrer a esta técnica.
Por isso, se quiser usar a imagem congelada no seu guião, procure uma maneira diferente e inovadora de o fazer. Com isso dará, sem dúvida, um sabor especial à sua escrita.
Encerro com uma nota de humor: a série Police Squad terminava os seus episódios com um falso freeze frame, que gozava com o uso e abuso dessa técnica na televisão. Fica aqui uma pequena compilação desses inventivos epílogos; por favor vejam até ao fim.
Guiões referidos no texto
Lock, Stock, and Two Smoking Barrels
Butch Cassidy & The Sundance Kid