James Caan faleceu na semana passada, aos 82 anos, depois de uma longa carreira, que incluiu papéis marcantes como o de Sonny Corleone, no primeiro Padrinho, Jonathan E. em Rollerball e, sobretudo, o escritor Paul Sheldon nesse fantástico Misery.
É em sua homenagem que hoje publico mais um grande diálogo, precisamente daquela cena que ninguém que tenha visto este último filme vai alguma vez esquecer.
O guião é do extraordinário William Goldman, a partir de um romance de outro mestre, Stephen King.
É um grande atrevimento tentar traduzir uma obra destas, mas espero que me perdoem o resultado.
RIP, James Caan.
O QUARTO. DE MANHÃ CEDO.
Parou de chover, PAUL ainda dorme. De repente, para nossa surpresa, ouvimos uma VOZ que ainda não tínhamos ouvido antes no filme — alta — e por um momento não reconhecemos essa voz, e depois reconhecemos: é LIBERACE falando ao seu público num disco que está a tocar, “Obrigado, obrigado, que maravilha estar convosco de novo aqui em Paris…” PAUL agita-se e acorda e descobre que está amarrado à cama. Pode mexer os braços, mas é tudo.
CORTA PARA:
ANNIE, de pé no quarto, muito composta; os seus olhos brilham. Brilham demais. Brilham mesmo demais.
Vem encostar-se ao fundo da cama.
CORTA PARA:
PAUL, ainda tonto por ter sido drogado, tenta limpar as teias de aranha.
ANNIE
(com voz suave)
Paul, eu sei que tu saíste.
PAUL
O quê?
ANNIE
Tu saíste do teu quarto.
PAUL
Não, não saí.
ANNIE
Paul, o meu pequeno pinguim de cerâmica no escritório está sempre voltado para o sul.
PAUL
Não sei do que é que estás a falar.
PAUL olha para ela – totalmente honesto e sincero. Enquanto fala, a sua mão começa a mover-se subrepticiamente em direção à borda do colchão.
CORTA PARA:
ANNIE, enquanto ela tira a faca do bolso da saia.
ANNIE
É disso que estás à procura? Eu sei que saíste duas vezes, Paul. No começo, não consegui perceber como é que conseguiste, mas ontem à noite encontrei a tua chave.
(Mostra o gancho de cabelo)
Eu sei que deixei o meu álbum de recortes de fora, e posso imaginar o que deves estar a pensar de mim. Mas sabes, Paul, está tudo bem.
CORTA PARA:
ANNIE, enquanto caminha lentamente de volta ao pé da cama.
E agora um TUMP vem do pé da cama. Algo está fora de vista.
CORTA PARA:
PAUL, olha para ela; espera.
ANNIE
Ontem à noite ficou tudo tão claro. Agora percebo que só precisas de mais tempo. Eventualmente, aceitarás a ideia de estar aqui. Paul, já ouviste falar nos primeiros dias nas minas de diamantes Kimberly? Sabes o que eles faziam aos trabalhadores nativos que roubavam diamantes? Não te preocupes, não os matavam. Isso seria como jogar fora um Mercedes só porque ele tinha uma mola partida – não, se eles os apanhavam tinham que ter a certeza de que poderiam continuar a trabalhar, mas também tinham que ter a certeza de que nunca poderiam fugir. Chamavam a essa operação “coxeamento”.
E com isso, ela baixa-se e reaparece com um pedaço de madeira de 4 x 4 de 40 centímetros.
PAUL
Annie, o que quer que estejas a pensar, não faças isso.
CORTA PARA:
ANNIE. Ela enfia o 4 x 4 firmemente entre as pernas dele, logo acima dos tornozelos, prende e ajusta os pés.
ANNIE
Não te preocupes, Paul.
PAUL
Por que é que eu fugiria? Sou um escritor, Annie – é tudo o que sou – e nunca escrevi tão bem – até tu disseste que este é o meu melhor trabalho, não disseste?
ANNIE pega numa marreta.
PAUL
Não foi? Por que é que eu deixaria um lugar onde estou a fazer o meu melhor trabalho? Não faz sentido.
CORTA PARA:
ANNIE posiciona-se ao lado de seu tornozelo direito.
ANNIE
Shh, querido, confia em mim…
(aponta para o tornozelo)
É para o teu bem.
Ergue a marreta.
PAUL
Annie, pelo amor de Deus, por favor.
ANNIE balança a marreta, que faz contato com o tornozelo. Este quebra com um CRACK agudo.
CORTA PARA:
Plano aproximado de PAUL: gritando.
CORTA PARA:
ANNIE, movendo-se para o outro lado da cama.
ANNIE
Já está quase, só mais um.
E quando ela quebra o outro tornozelo, PAUL grita ainda mais alto.
CORTA PARA:
Plano aproximado de ANNIE.
ANNIE
Meu Deus, como eu te amo…
CORTA PARA:
A CARA DE PAUL. Está para além da agonia.
FADE A NEGRO:
Veja aqui a cena como apareceu no filme.