Quando tenho uma ideia para um roteiro/filme, geralmente escrevo muito sobre o que quero abordar/apresentar com aquela obra. Mas fico sem saber como denominar esse tipo de escrita, que não cabe nas categorias normais como “grelha”, “sinopse”, “argumento”, etc. – Paulo
Paulo, a sua questão vem na sequência de um artigo que publiquei na semana passada, sobre as diferenças entre argumento, guião e roteiro.
Nesse artigo, além de responder diretamente à questão então colocada pela Marta, aproveitei para recapitular os principais documentos que, em várias etapas, podem fazer parte do processo de desenvolvimento de um guião. São, entre outros, as tais “grelhas”, “sinopses”, “argumentos” que refere na sua questão.
Mas há, realmente, muita outra escrita (e atividade criativa) para além das etapas que referi – muita “escrita antes da escrita”.
Estou a falar de um manancial de ideia soltas, notas, documentos, textos, recolhas de informação e pesquisa, desenvolvimento e descrições de personagens, listas, esboços de estruturas, etc, que cada autor, há sua maneira, sempre vai acumulando.
É uma coisa infinitamente pessoal, confusa, por vezes caótica, que varia de autor para autor e, mais, de projeto para projeto.
O problema de teorizar sobre essa fase da criatividade é que é ainda mais pessoal e individual do que as outras que referi, e como tal, ainda mais difícil de sistematizar. O que não me impede de tentar.
De forma geral, dividiria então o processo de escrita do guião em três fases:
- A pré-escrita, ou escrita preparatória;
- A escrita propriamente dita, que abordo no meu ebook mais recente;
- A reescrita, sobre a qual já escrevi num ebook anterior.
A pré-escrita
A pré-escrita é uma designação genérica para toda a a actividade criativa e investigativa que antecede a escrita do guião propriamente dita. Como refiro acima, é infinitamente variável e personalizada, mas há alguns elementos que são mais comuns e frequentes.
Por um lado, temos os documentos mais estruturados, que analisei no artigo anterior: os referidos loglines, outlines, tratamentos, etc. Estes documentos destinam-se muitas vezes destinados a ser partilhados com terceiros: produtores, realizadores, financiadores, distribuidores, etc.
Além destes documentos, temos depois o que eu chamaria de sementes criativas. São todas as anotações, mais ou menos estruturadas, que um autor vai acumulando, por vezes involuntariamente, e que acabam por coalescer numa obra criativa.
Um guião começa, muitas vezes, com uma ideia solta que anotamos num caderno. Se essa ideia for suficientemente forte, começamos naturalmente a juntar outras anotações e ideias soltas relacionadas com ela. A certa altura pode dar-se um efeito de “bola de neve” em que estas várias anotações ganham massa crítica suficiente para se converter num projeto com vida própria.
O meu guião (ainda por produzir) Um Homem na Cidade nasceu de uma notícia que li no jornal há muitos anos e sobre a qual escrevi uma nota num pequeno caderno. Mas só ganhou autonomia quando ouvi um fado que me sugeriu uma imagem para o protagonista (e, ao mesmo tempo, um título para o guião). A partir daí comecei a tomar notas, estruturar ideias e explorar caminhos que, em última instância, me me levaram a uma primeira versão do guião, que estou atualmente a reescrever.
Estas sementes criativas podem tomar muitas formas:
- Notas relacionadas com os personagens: suas características, ideias para nomes, relações, vida anterior, profissões, entrevistas, simulações de comportamento, relacionamentos, descrições de personagens, referências a personagens famosos, referências a personalidades, mapas de personagens, listas de defeitos e virtudes, etc.
- Notas relacionadas com o enredo: listas de cenas, obstáculos e dificuldades, hipóteses, alternativas, questões pendentes, sequências, dúvidas a esclarecer, etc.
- Notas sobre o mundo da estória: locais, cenários possíveis, edifícios, ambientes, roupas, etc.
- Notas sobre a escrita: estilo, ideias visuais, trechos de diálogos, transições, referências de cenas de filmes ou livros,
- Referências visuais – fotografias, pessoas, actores que poderiam interpretar, lugares, pinturas, Google Maps, etc.
- Referências de inspiração – música, literatura, outros filmes, poesia, textos, notícias, sites, etc.
- Referências factuais – toda a pesquisa em geral sobre o universo da estória (o tráfico de droga na Galiza, os seringais no início do século XX, a vida de Aristides de Sousa Mendes, etc), referências, obras a consultar, notícias relacionadas, etc.
- Ideias cruzadas – ideias anteriores, notas não relacionadas, conversas casuais, etc.
Isto é apenas um pequeno exemplo do que pode fazer parte dessa recolha de ideias que antecede a escrita. Independentemente do seu conteúdo exacto, todas têm uma coisa em comum: terão de ser registadas em algum lado.
Daí a importância de andar sempre com algum tipo de livro de notas. Não importa se é em papel, como uma Moleskine, ou um aplicativo no smartphone, como o Evernote, mas temos de ter algum repositório para as nossas ideias.
A bailarina e coreógrafa Twyla Tharp descreve, no seu livroThe Creative Habit (que é um dos melhores e mais inspiradores livros sobre o processo criativo) um método muito interessante para recolher toda esta informação. Quando começa a pensar numa coreografia para um bailado separa uma caixa de cartão onde passa a depositar, a partir daí, todos os materiais que vai recolhendo para esse projecto: livros, CD’s, fotos, textos, etc. Essas caixas vão-se acumulando com o tempo e, além do mais, dão-lhe uma perspectiva sobre todo o trabalho que desenvolveu.
O método exacto não interessa; o importante é haver um. A última coisa que, como autores, precisamos, é esquecer uma ideia importante que nos surgiu quando estávamos fora do nosso ambiente de trabalho. E se confiarmos apenas na nossa memória, é mais do que certo que isso vai acontecer muitas vezes.
Sobre esse material que geramos durante a criação, há uma autora brasileira (Cecília Almeida Salles) que os nomeia como “Documentos de Processos”. Essa nomenclatura é proposta em seu livro “Gesto Inacabado”, no qual ela aborda o processo de criação artística em diversas áreas baseada em uma metologia científica chamada de Crítica Genética.
Desconhecia essa metodologia, mas parece ser interessante.
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