Neste artigo continuamos a estudar a elipse narrativa, essa poderosa ferramenta à disposição de todos os contadores de estórias. Depois de analisar mais alguns exemplos da estória do cinema, vou também dar algumas sugestões de como as podemos usar nos nossos guiões.
No artigo anterior distinguimos as elipses funcionais das elipses expressivas, e vimos como estas últimas podem servir para indicar saltos no tempo, gerir o ritmo da informação e dar uma ideia da passagem do tempo.
Nesta segunda parte vamos começar por ver outras possibilidades de uso das elipses para conseguir determinados efeitos de expressividade dramática.
Estimular a imaginação
O uso de elipses sucessivas também pode servir para envolver o espectador de forma mais profunda na descodificação da nossa estória.
Através do que mostramos nas cenas deixadas entre as elipses, convidamos o espectador a usar a imaginação para montar o puzzle do que se passou nos lapsos de tempo eliminados.
Os autores do inovador filme de 1941, Citizen Kane – O Mundo A Seus Pés, Herman J. Mankiewicz, Orson Welles e John Houseman, criaram uma demonstração genial desta forma de usar as elipses na famosa sequência dos pequenos almoços 1.
Ocultação de informação
Mas as elipses não servem apenas para fazer a estória avançar no tempo.
Uma das suas aplicações mais interessantes é para ocultar informação, com diversos objectivos, como despertar a curiosidade, criar suspense ou ultrapassar limitações culturais, entre outros.
Despertar a curiosidade
Por exemplo, quase no fim de Juno, outro filme que eu não me canso de citar, a protagonista deixa uma mensagem escrita à mãe adotiva que ela tinha escolhido para o bebé mas que, devido a um inesperado divórcio, já não vai poder assumir esse papel.
Uma elipse impede-nos de saber o teor da mensagem, que só viremos a descobrir algumas cenas depois. É impossível não ficar curiosos e ansiosos por saber qual foi a decisão de Juno em relação ao seu filho.
Vejamos como esta cena era já descrita no guião (tradução minha).
(…)
Há uma BATIDA SONORA na porta da frente.
EXT. CASA DOS LORING – ENTRADA – NOITE
Mark abre a porta. Há um pedaço de papel dobrado pousado no tapete. Ele olha e vê Juno a afastar-se na sua carrinha.
Mark desdobra cuidadosamente o pedaço de papel –- leva um minuto por causa da habilidade de Juno em “origami adolescente”. Levanta-o um pouco. Podemos ver que há PALAVRAS ESCRITAS na parte de trás.
MARK
Parece uma fatura de oficina.
Vanessa arranca o bilhete da mão dele e vira-o, examinando-o.
VANESSA
É para mim.
EXT. CASA MACGUFF – NOITE
Juno estaciona o seu carro e caminha até casa. A luz do alpendre foi deixada acesa para ela, e o lugar parece aconchegante e convidativo.
JUNO (V.O.)
Só percebo o quanto gosto de estar em casa quando passo algum tempo num lugar realmente diferente.
Tira uma FLOR do jardim mal-arranjado perto do alpendre e cheira-a. Levanta a camisa e faz cócegas na barriga com ela. Depois enlaça a flor no seu cabelo mal-arranjado.
Criar suspense
Um dos efeitos mais frequentes da ocultação de informação através de uma elipse é a criação de um efeito de suspense, que eu defino como curiosidade tingida de ansiedade.
Quanto mais crucial para o bem estar ou segurança de um personagem for a informação omitida, maior será o suspense sentido pelos espectadores. Este efeito é muitas vezes usado nos chamados ganchos, ou seja, naquelas cenas de tensão que ficam por concluir imediatamente antes de um intervalo ou do final de um episódio televisivo.
Um grande exemplo disso pode ser encontrado no final de Halloween, filme de 1978 que marcou indelevelmente todos os subsequentes filmes de terror, criando quase sozinho um sub-género, os slasher movies.
Contornar limitações culturais
Muitas vezes, somos obrigados a ocultar alguns tipos de informação por razões culturais ou de censura.
As elipses são nesse caso usadas para omitir da nossa estória cenas consideradas potencialmente chocantes, incómodas ou ofensivas para os públicos a que os filmes se destinam. Essas cenas caem normalmente no âmbito do sexo, violência, ou tabus culturais.
Por exemplo, as cenas românticas são muitas vezes interrompidas antes da concretização do ato sexual. E mesmo quando este é mostrado, isso normalmente é feito de forma muito limitada e “elíptica”, exceto em filmes para adultos ou obras mais radicais.
O guionista Scott Frank e o realizador Steven Soderbergh demonstram-no de forma sublime nesta sequência do filme Out of Sight – Romance Perigoso de 1998.
Também neste aspecto da censura tem havido evolução na utilização das elipses. Hoje são aceitáveis, ou mesmo esperadas, certas cenas que algumas décadas atrás seriam inevitavelmente omitidas.
Mesmo assim, continua a haver muitas situações em que a elipse é a melhor solução para contornar momentos incómodos da nossa estória. É o caso dos partos, morte de crianças, cenas de tortura ou violência extrema, situações no âmbito da pedofilia, ou outros eventos socialmente inaceitáveis.
Cinema Paradiso, aquele filme de que é proibido não gostar, tem uma referência muito curiosa à questão da censura.
Se bem se recordam, o filme termina com a fabulosa sequência da montagem dos beijos que o conservador pároco da cidade tinha mandado cortar dos filmes projetados no cinema local, para proteger os espectadores da sua influência perversa.
Podemos imaginar as elipses narrativas – involuntárias e não planeadas pelos autores – que esse ato de censura introduziu na experiência dos espectadores ao assistir a esses filmes .
Simbolismo
Um resultado mais subtil, e por isso mais raro e difícil de aplicar, do uso das elipses é quando elas acrescentam algum valor simbólico ou temático à nossa narrativa.
Por exemplo, no episódio piloto da magnífica minissérie Gambito da Dama, escrita e realizada pelo já mencionado Scott Frank, há uma elipse temporal entre a infância e a adolescência da protagonista, em que são omitidos vários anos da sua vida no orfanato.
A cena antes dessa elipse termina com a protagonista, Beth Harmon, a adormecer a sonhar com partidas de xadrez, sob o efeito de um comprimido calmante.
Dessa forma, o autor diz-nos, subtilmente, que esses dois elementos – o xadrez e os narcóticos – continuarão a ser os pilares essenciais da vida dela no futuro, por muito tempo que passe.
Em Lawrence da Arábia, a obra-prima de 1962, os guionistas Robert Bolt e Michael Wilson criaram uma das mais famosas elipses do cinema, plena de simbolismo. Vejamos como ela era indicada no argumento do filme.
(…)
DRYDEN prepara um cigarro preto russo. LAWRENCE adianta-se, agarra numa caixa de fósforos e acende-lhe um.
LAWRENCE
(suavemente)
Não, Dryden, vai ser divertido.
A intensidade firme da sua expressão contradiz as suas palavras.
CLOSE UP. DRYDEN. Olha do fósforo aceso nos dedos de LAWRENCE para o rosto de LAWRENCE.
DRYDEN
(amargo)
É sabido que você tem um sentido muito particular do que é divertido.
CLOSE UP. LAWRENCE. Sorri e leva o fósforo aos lábios. Sopra e apaga-o normalmente.
DISSOLVE TO:
NASCER DO SOL NO DESERTO
(…)
Este corte do fósforo apagado para o nascer do sol no deserto é uma das mais famosas elipses visuais da história do cinema, um tour de force de realização, cinematografia e montagem.
Através dela percebemos, simbolicamente, que Lawrence apaga a banalidade da sua vida até ao momento para abrir um novo capítulo, em que a imensidão do deserto terá o papel principal.
Também na já referida cena dos hominídeos no filme 2001: Uma Odisseia no Espaço os autores incluíram uma camada simbólica que quase passa despercebida.
O guionista Arthur C. Clarke revelou numa entrevista que, na interpretação de Kubrick, a nave espacial era na realidade uma arma orbital. Ou seja, a arma-osso do nosso antepassado transformou-se numa arma-satélite dos nossos descendentes – o tempo passou mas nada mudou na natureza humana.
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As anti-elipses
Finalmente, quero aqui chamar a atenção para uma última forma de (não) usar as elipses, que poderíamos designar por anti-elipses.
As elipses funcionais são um elemento tão universal da linguagem audiovisual que o facto de não as utilizamos quando seria esperado acaba por ter uma força significante.
Voltemos ao exemplo inicial da visita do nosso personagem à namorada. Se intencionalmente mostrarmos todas as etapas do percurso entre as duas casas – pegar na chave do carro, sair de casa, descer as escadas, atravessar a rua, entrar no carro, ligar o carro, fazer o trajecto, parar em todos os semáforos, etc. – iremos provocar uma sensação de estranheza no espectador, habituado à elipse que seria normal nessa situação.
É o que acontece, por exemplo, numa das sequências iniciais do filme A Rede Social. O protagonista, Mark Zuckerberg, depois de um jantar que corre mal, regressa ao seu dormitório na universidade.
O trajecto longo e “inútil” serve de base para o genérico inicial do filme, é certo, mas funciona também como contraponto para a intensa cena inicial, destacando a sensação de algum isolamento do protagonista.
As anti-elipses têm, pela sua estranheza, uma força expressiva que podemos usar para sublinhar certos aspectos emocionais da nossa estória.
Como indicar as elipses num guião
As elipses não precisam de ser destacadas num guião da mesma forma como, por exemplo, assinalamos os Flashbacks ou as Montagens de cenas.
Pelo simples facto de dividirmos o guião em cenas já estamos automaticamente a inserir elipses na narrativa.
Como é sabido, devemos começar uma nova cena sempre que:
- há uma mudança de local da ação;
- a ação continua no mesmo local mas há um salto no tempo.
Dessa forma, ao introduzir um novo Cabeçalho, que marca o início de uma nova cena, estamos quase sempre a introduzir algum tipo de elipse na narrativa.
No entanto, os espectadores do filme ou do episódio de televisão não vão ter os Cabeçalhos do guião para os orientar.
Por isso, pode ser conveniente incluir no guião formas visuais para os ajuda a acompanhar os saltos no tempo. Vejamos algumas delas:
- Mudanças óbvias do local da ação – quase sempre que mudamos de um local para o outro estamos a avançar na cronologia da nossa estória.
- Mudanças de trama – quando acompanhamos várias tramas em paralelo, a mudança de uma para outra é muitas vezes aproveitada para marcar passagens de tempo ou introduzir outros tipos de elipses.
- Dia e noite – a mudança do dia para a noite, e vice-versa, é um dos indicadores mais óbvios de que o tempo está a avançar na nossa estória. Essa é uma das razões porque essa informação é sempre incluída nos Cabeçalhos das cenas.
- A passagem das estações – sinais como a alternância do sol para a chuva, a neve, a queda de folhas, etc, podem ajudar a indicar a passagem de tempo.
- Transformação humana – sinais fisionómicos como a presença ou ausência de barba, mudanças de cortes de cabelo e penteados, envelhecimento físico, uma gravidez, também ajudam a identificar a passagem do tempo.
- Mudanças de roupa – a alteração do guarda-roupa dos personagens é também uma indicação visual de mudança do tempo. Normalmente não precisamos de o indicar – o departamento de guarda-roupa trata disso – mas se, por exemplo, apresentámos a nossa protagonista no inverno e agora estamos no verão, uma forma fácil de o explicitar é através da descrição das roupas dela em cada situação.
- Degradação da roupa – da mesma forma, a degradação das condições de uma peça de roupa de um personagem pode ajudar a indicar a passagem do tempo. Por exemplo, a camisa impecavelmente branca que, mais tarde, fica suja de sangue; ou uns sapatos que vemos comprar e depois nos são mostrados com um buraco na sola.
- Adereços – embora possa ser uma solução preguiçosa, não devemos esquecer a possibilidade de usar elementos óbvios como os mostradores de um relógio, as folhas de um calendário, uma vela derretida, entre outros adereços.
- Sinais físicos no meio ambiente – transformações significativas de locais podem ajudar a identificar o sentido da passagem do tempo. Por exemplo, ver uma casa nova e, noutra cena, vê-la já destruída por um incêndio,
- Símbolos – árvores de Natal abandonadas, o vento que apaga umas pegadas na areia, um osso que se transforma numa nave espacial… Encontrar formas interessantes de mostrar a passagem do tempo vai seguramente enriquecer o nosso guião.
- Legendas – finalmente, usar uma legenda sobreposta à imagem, como “Uma semana depois”, pode ser a maneira mais simples e económica de indicar um salto temporal, se não quisermos perder demasiado tempo com essa situação.
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Um erro a evitar
Um erro que me surpreende sempre que o encontro num guião – normalmente amador -, ou até em certos filmes de menos qualidade, é quando o autor parece esquecer que o tempo também passa para os restantes personagens que não estamos a acompanhar diretamente
O que é que o antagonista está a fazer enquanto a nossa protagonista está a preparar o o seu plano? Hibernou? Tirou férias?
O tempo não passa só para os nossos personagens; passa em todo o mundo.
Por exemplo, no excelente filme O Náufrago, quando Chuck, o personagem de Tom Hanks, consegue finalmente fugir da ilha onde ficou preso, descobre que a sua noiva não esperou por ele. Convencida de que ele tinha morrido, fez o luto e depois seguiu a vida e constituiu família.
O mundo não parou à espera que o protagonista conseguisse resolver o seu problema.
Conclusão
As elipses funcionais, as primeiras que referi no artigo anterior, não são normalmente uma preocupação dos guionistas. Ou, dito de outra maneira, algumas são introduzidas naturalmente pelas mudanças de cenas e outras são responsabilidade de realizador e editor, já na produção.
Já as elipses expressivas, pelo contrário, são uma excelente oportunidade para enriquecer os nossos guiões com momentos inesquecíveis para os leitores e espectadores.
Comentários e dúvidas
Se tiver alguma dúvida ou comentário quanto ao uso desta importante ferramenta, por favor deixe-as nos comentários abaixo. Tentarei sempre responder.
João, é impressionante o seu curriculum e o que se pode aprender nestes cursos! Parabéns!
Gostava de lhe apresentar uma investigação com base na estética.
Além disso, proponho que veja a Serra da Estrela como Nunca a Viu.
Obrigado.