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Ferramentas do escritor: as molduras narrativas

    Entre as muitas ferramentas à disposição dos escritores, as molduras narrativas são das mais antigas e mais frequentemente utilizadas para colocar as estórias em marcha e acrescentar-lhes interesse. Como tal, são uma técnica dramática que qualquer autor deve conhecer bem para saber usar adequadamente.

    O que é uma moldura narrativa

    Desde pequenos que vivemos rodeados por estórias, e muitas das mais conhecidas e populares usam uma ferramenta que em português se chama moldura narrativa (ou também narrativa-moldura), designação que corresponde à expressão inglesa “frame story”.

    Moldura narrativa é a técnica de dramaturgia em que um autor usa uma estória unificadora exterior para enquadrar uma ou várias estórias principais, interiores. Essa estória introdutória forma como que uma moldura em redor das outras narrativas.

    De forma geral, a estória central deve ser mais importante do que a narrativa-moldura, tal como se passa no mundo da arte, que inspirou esta designação.

    Uma moldura bonita, rica e trabalhada, pode acrescentar valor a uma pintura, mas não é a principal razão porque a obra é apreciada; a própria pintura será sempre o principal e, muitas vezes, nem precisa de qualquer moldura para se afirmar.

    Não se visita o Louvre para ver a moldura da Mona Lisa

    Na sua forma mais simples, a narrativa-moldura apresenta um personagem que conta a estória principal a outro personagem. Esta estória principal pode ser uma ficção assumida, como no filme The Princess Bride, ou podem ser as suas próprias memórias, como no livro O Coração das Trevas.

    No primeiro caso temos um avô que lê um livro ao seu neto doente, que o ouve inicialmente contrariado. No segundo, temos um narrador que recorda uma noite em que um velho marinheiro lhe contou uma viagem terrível rio acima, no interior de África.

    O narrador e os seus ouvintes podem aparecer apenas no princípio e no fim da narrativa, ou o autor pode regressar algumas vezes a essa narrativa-moldura, interrompendo a narrativa central.

    Além desta forma básica, há muitas outras possibilidades para utilizar molduras narrativas.

    Alguns exemplos de molduras narrativas

    As narrativas-moldura são uma técnica que provavelmente começou na tradição oral, e depois migrou da palavra escrita para o audiovisual. Grandes clássicos da literatura de todas as épocas, como a Odisseia, o Decameron, As Mil e Uma Noites ou o próprio D. Quixote usam esta técnica para enquadrar e aglutinar estórias diferentes.

    No cinema os exemplos são múltiplos, desde grandes êxitos populares como Titanic a dramas íntimos como A Amante do Tenente Francês, de clássicos como Citizen Kane e Rashomon a comédias bizarras como O Grande Hotel Budapeste, passando por filmes de guerra como Saving Private Ryan ou o meu próprio O Cônsul de Bordéus.

    Um autor contemporâneo que gosta particularmente deste mecanismo é o argumentista americano Aaron Sorkin, que já a utilizou em filmes como A Few Good Man, Os 7 de Chicago, Being the Ricardos ou mesmo em A Rede Social.

    Being The Ricardos, uma estória emoldurada.

    Porque usar as molduras narrativas

    As molduras narrativas são bem utilizadas quando acrescentam camadas adicionais de significado às estórias centrais que emolduram.

    Algumas vezes servem para lhes dar algum enquadramento, que pode ser necessário para o seu melhor entendimento ou para compreender a sua importância.

    Noutros casos, permitem comentar o desenvolvimento da narrativa principal, ou esclarecer os seus aspectos mais complicados.

    Nas suas melhores utilizações, as narrativas-moldura criam tensão emocional e geram expectativa sobre a estória principal.

    Finalmente, as narrativas-moldura podem servir também para aglutinar diversas narrativas que, de outra forma, não teriam qualquer tipo de coerência interna.

    Obviamente, uma destas utilizações não exclui as outras. Várias funções podem ser combinadas na mesma narrativa-moldura.

    O que lhes é comum, contudo, é que em todas estas situações a moldura narrativa acrescenta um valor real à estória central, que justifica a sua utilização.

    Pelo contrário, as molduras narrativas não devem ser usadas apenas como um truque fácil para acrescentar algum interesse a uma narrativa central insípida.

    Se a nossa estória principal não funcionar bem só por si, nenhuma manobra vai contornar essa limitação essencial.

    Em última instância, usar ou não uma moldura é uma decisão autoral de grande importância, porque marca estruturalmente a forma da estória. Só o próprio autor pode decidir se a utilização dessa ferramenta é benéfica ou prejudica a sua narrativa.

    Com moldura ou sem moldura?

    Alguns tipos de molduras narrativas

    Há uma infinidade de formas de aplicação das molduras narrativas, sendo isso que justifica que continuem a ser tão populares, apesar de já terem sido tão usadas ao longo de tanto tempo.

    Os exemplos que se seguem não esgotam as possibilidades mas podem ser uma inspiração para encontrar soluções originais para novas estórias.

    A Narração

    Como já referi, esta é a forma mais simples e também uma das mais antigas. Há registo de estórias egípcias com milhares de anos que seguiam este formato.

    Neste tipo de moldura narrativa, um personagem conta uma estória a outro personagem, como no já referido The Princess Bride. Nesse filme, um avô visita um neto doente e traz consigo um livro para lhe ler.

    A estória dentro da estória é, assim, uma narrativa assumidamente ficcional que, ao ser partilhada com um personagem da narrativa-moldura, também o é com o espectador.

    As Memórias

    Uma segunda forma acontece quando temos um personagem que conta aos seus ouvintes eventos que supostamente aconteceram na sua vida, as suas memórias. Uma das obras literárias mais antigas do cânone ocidental, A Odisseia, usa precisamente este formato, com Ulisses a narrar as suas aventuras nos dez anos que se seguiram à Guerra de Tróia, enquanto tentava regressar a casa.

    No filme Titanic a moldura narrativa é a estória dos mergulhadores que exploram os destroços do grande navio. Confrontada com esta situação, Rose, uma idosa sobrevivente do grande desastre, recorda todos os eventos dessa noite fatídica e dos dias felizes que a antecederam, quando se apaixonou pelo malogrado Jack.

    A Entrevista

    Em alguns casos, as memórias dos eventos descritos na estória principal são extraídas ao seu narrador através de uma entrevista jornalística.

    Nesta abordagem, há um personagem que entrevista outro, ou outros, e a estória principal nasce desses depoimentos dos entrevistados.

    Esta é a estrutura que usei no guião de O Cônsul de Bordéus, por exemplo, em que uma entrevista a um velho e famoso maestro judeu, nos revela a sua infância durante a Segunda Guerra Mundial e o contacto que teve com o cônsul português Aristides da Sousa Mendes, que o salvou, juntamente com outros 10.000 judeus, da perseguição dos nazis.

    Os Depoimentos

    Uma variação do formato da entrevista é quando as memórias que compõem a estória central são recolhidas através de depoimentos separados de diversas pessoas.

    É a moldura que Aaron Sorkin utiliza no recente filme Being the Ricardos. A partir de depoimentos de várias pessoas envolvidas na estória central – argumentistas, atores, produtores -, depoimentos esses supostamente gravados muitos anos mais tarde, vai sendo reconstruída uma semana crucial durante a produção da popular comédia dos anos 50, I Love Lucy, que marcou a vida dos protagonistas e até toda a televisão contemporânea.

    O Interrogatório

    Uma outra variação do mesmo formato é o interrogatório policial. Neste caso, o testemunho não é voluntário, como na entrevista, mas extraído no âmbito de uma investigação policial.

    Por exemplo, no filme Os Suspeitos do Costume um detetive da polícia interroga um homem que esteve envolvido numa série de eventos bizarros com um grupo criminoso.

    Através do seu depoimento vamos assistindo, em flashback, à estória principal do filme, que começa pela reunião casual dos seus protagonistas numa esquadra policial.

    Não vou fazer revelar o final desse celebrado filme, que é um dos mais marcantes e inesquecíveis do cinema, mas ele é um exemplo perfeito de uma possibilidade que as molduras narrativas baseadas em testemunhos oferecem ao autor: deixar o espectador na dúvida sobre a fiabilidade do narrador.

    O Julgamento

    Em muitos filmes de tribunal, um género bastante popular, o julgamento de um caso importante é a narrativa-moldura para a estória central, que são os próprios eventos que estão a ser avaliados pelos magistrados.

    É o que acontece, por exemplo, em dois filmes do já referido Sorkin, Uma Questão de Honra e Os 7 de Chicago.

    O primeiro, adaptado de uma peça teatral do próprio Sorkin, acompanha um julgamento no seio da instituição militar. O crime que está a ser julgado vai sendo reconstituído pelos depoimentos das diversas testemunhas e arguidos.

    O mesmo acontece no segundo, que descreve um momento importante da história dos direitos civis na América através de um julgamento real. Os protestos contra a guerra do Vietnam em Chicago, em 1968, são a estória central; o julgamento de 7 dos seus líderes, um processo muito mediático e controverso na época, é a estória que os emoldura.

    Um caso muito curioso deste tipo de filmes é o clássico Rashomon, de Akira Kurosawa. Nesse filme, diversas testemunhas de um crime narram a sua versão dos eventos perante um magistrado judicial.

    Os seus testemunhos divergem e chegam a contradizer-se, levantando uma vez mais a questão da confiança do espectador no narrador de uma estória.

    A Viagem do Herói

    A Viagem do Herói é um modelo narrativo que já apresentei aqui no site, em que um protagonista deixa o seu mundo normal para embarcar em aventuras num mundo especial, retornando às suas origens no final da estória.

    Em algumas instâncias da Viagem do Herói, as cenas iniciais e finais no mundo normal do protagonista funcionam como uma moldura-narrativa para o grosso da estória, que se passa no mundo especial.

    É o caso, por exemplo, de O Feiticeiro de Oz. Nesse clássico infantil, as cenas iniciais e finais no Kansas, o mundo normal da protagonista Dorothy (filmadas a preto e branco), são a narrativa-moldura para a estória principal (filmada em Technicolor), que se desenrola no maravilhoso mundo de Oz.

    A Viagem de uma Heroína de sapatilhas vermelhas

    Estes são apenas alguns exemplos muito frequentes de formas de utilizar as molduras narrativas, mas muitos outros formatos poderiam ser apresentados.

    Por exemplo, em Pulp Fiction, as duas cenas de Prólogo e Epílogo, com Pumpkin e Honey Bunny no restaurante, são a moldura narrativa das estórias centrais do filme. O curioso, neste caso, é que a narrativa não sequencial que Quentin Tarantino e Roger Avary teceram permite que dois personagens da estória central, Vincent e Jules, entrem também na cena final, fechando de certa forma o círculo de todas estas narrativas cruzadas.

    Outra possibilidade é quando se utiliza a narrativa-moldura para comentar a estória principal. No já referido The Princess Bride o neto doente interrompe frequentemente o avô para se queixar de alguma coisa de que não gostou na estória, pedir esclarecimentos ou elogiar algum momento particular.

    Em certos casos a narrativa-moldura é a justificação para a narrativa central. É o que acontece no clássico Citizen Kane de Orson Welles e Herman J. Mankiewicz. Quando o protagonista, o magnata Kane, morre suspirando a enigmática palavra “Rosebud”, a busca de uma explicação para essa palavra é o que justifica a investigação jornalística que se segue. Através da recolha de testemunhos das pessoas que o conheceram vai-se reconstituindo a vida do milionário. O repórter nunca chega a encontrar uma explicação, mas o espectador sim, na cena que encerra a narrativa-moldura e o filme.

    Mais um exemplo: no clássico da literatura As Mil e Uma Noites, a narrativa-moldura centra-se na rainha Sherazade, que tem de entreter o seu esposo, o rei Shariar, com estórias diferentes todas as noites, de forma a não ser executada pela manhã. Esta moldura funciona como um pretexto para aglutinar e dar coerência a uma série de lendas, contos e narrativas díspares de diversas origens no Oriente e Médio Oriente. Entre outras curiosidades relacionadas com esta obra, é de destacar que algumas dessas estórias interiores são, por sua vez, molduras narrativas para outras estórias ainda mais interiores: estórias dentro de estórias dentro de estórias.

    O mesmo se passa no filme O Grande Hotel Budapeste, de Wes Anderson. Nessa comédia estilizada e pós-moderna, conhecemos uma mulher que carrega um livro com o mesmo título do filme. Num capítulo desse livro encontramos o seu autor, que recorda uma viagem que fez ao hotel do mesmo nome. Nessa viagem encontrou o dono, um homem idoso que, por sua vez, lhe narra alguns eventos da sua juventude no hotel, que são o tema da estória central.

    É, pois, uma estória narrada, dentro de outra narrativa, dentro de um livro que faz parte da estória mais exterior. Estórias, dentro de estórias, dentro de estórias, como as populares matrioskas russas.

    Estórias dentro de estórias dentro de estórias

    O que não constitui uma moldura narrativa

    É importante distinguir alguns casos que, embora similares, não podem ser considerados molduras narrativas.

    Um bom exemplo são os flashbacks. Apesar dos flashbacks serem a base de muitas narrativas-moldura, como acontece em Titanic, nem todos os flashbacks o são. Veja-se o caso do flashback em Casablanca, quando vemos uma montagem da vida dos protagonistas em Paris antes da guerra. Nesse caso o flashback é apenas uma memória incluída na estória principal, que constitui a narrativa central do filme.

    Também as vozes em off, sobrepostas à imagem, são um dispositivo dramático usado em muitas molduras narrativas. Mas nem todas as vozes off são sinónimo de narrativa-moldura. No guião de A Selva, que escrevi, a voz off é apenas uma ferramenta para acrescentar algum comentário íntimo do protagonista Alberto.

    Finalmente, embora todas as molduras narrativas configurem uma estória dentro de outra estória, o inverso nem sempre é verdade. Por exemplo, em Kill Bill: Volume1 e Kill Bill: Volume 2 temos diversas estórias mais ou menos independentes, dentro da estória central da Noiva, que não conferem a essa estória o papel de moldura.

    É o caso, só para destacar duas, da narração da infância sangrenta da personagem O-Ren, contada em estilo anime; ou o flashback sobre a educação marcial da Noiva no capítulo VIII, O Cruel Treinamento de Pai Mei. Ambas essas narrativas são apenas estórias dentro de uma estória maior.

    Nem todas as estórias dentro de estórias são narrativas emolduradas.

    Conclusão

    Quando bem utilizadas, como nos inúmeros exemplos que escolhi acima, as molduras narrativas podem e devem acrescentar valor emocional e narrativo às estórias que circundam.

    Isso acontece normalmente quando o espectador compreende a razão de ser dessa moldura, percebe o que está a acontecer nela, obtém algum tipo de informação adicional, e tem motivos para se preocupar ou gostar dos seus protagonistas.

    Se a mais-valia de uma moldura narrativa não for óbvia, então possivelmente é melhor questionar a sua utilização.

    Por vezes uma estória sustenta-se completamente a si mesma, nem necessidade de qualquer enquadramento, comentário ou acréscimo de tensão. Nesses casos, o melhor será mesmo deixá-la assim, entregue aos seus próprios meios, como uma pintura de Miró destacando-se de uma parede branca.

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