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Perguntas & Respostas: Como distinguir cenas e sequências num guião

    Gostaria de saber qual a indicação que devo colocar no cabeçalho nas cenas passadas em vários locais. — Patrícia

    Patrícia, por definição uma cena é uma unidade de acção passada num único local, num determinado momento. Quando a acção se passa em vários locais, ou no mesmo local mas em momentos distintos, estamos perante várias cenas. Neste caso deve tratá-las independentemente, dando a cada uma delas um cabeçalho distinto.

    Outro caso diferente é o das “montagens” e/ou “sequências de imagens”. Ambas estas técnicas são usadas para descrever uma sucessão de mini-cenas ou acções curtas, normalmente sem diálogos, que são distintas o suficiente para não ser tratadas como uma mesma cena, mas também não têm importância  que chegue para justificar a separação em cenas diferentes.

    Nas “montagens” estas mini-cenas são geralmente díspares em termos de locais e intervenientes. Nas “sequências de imagens” costumam ter um ou mais personagens em comum. No entanto, é muito comum os guionistas confundirem os dois conceitos e usar igualmente um ou outro, o que não é grave.

    É importante não confundir a designação “sequência de imagens” com a designação mais genérica de “sequência”, que é um conjunto de cenas autónomas mas unidas por um fio condutor. Por exemplo, todos os filmes da série “Indiana Jones” começam com uma sequência muito bem definida, que é quase uma mini-estória dentro da estória do filme.

    Vejamos dois exemplos de “montagem” e “sequência de imagens”:

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    MONTAGEM

    O dia nasce em Lisboa:

    – um cacilheiro despeja uma vaga de pessoas sonolentas num cais da cidade;

    – dois comerciantes vizinhos cumprimentam-se enquanto sobem as grades das suas lojas;

    – o dono de uma banca de jornais corta o fio de um embrulho de diários novinhos;

    – José, sentado ao balcão de uma tasca, começa a ler um jornal desportivo enquanto espera o pequeno-almoço.

    FIM DA MONTAGEM

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    SEQUÊNCIA DE IMAGENS

    Um dia que começa igual a todos os outros:

    – José faz abdominais no chão do seu quarto;

    – de olhos fechados,  saboreia a água fumegante do duche que escorre sobre a sua cabeça e ombros;

    – no comboio, sacode o ombro para afastar um magala sonolento que pousou a cabeça nele;

    – José, sentado ao balcão de uma tasca, começa a ler um jornal desportivo enquanto espera o pequeno-almoço.

    FIM DA SEQUÊNCIA

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    Ambos os trechos descrevem o começo banal de mais um dia. O primeiro mostra-o através de uma diversidade de acções unidas apenas pelo tema comum – é uma “montagem”. O segundo centra-se na rotina de um personagem – é uma “sequência de imagens”. Viria algum mal ao mundo se trocássemos as suas designações e usássemos um em vez do outro? Nenhum.

    Vejamos agora um exemplo real,  retirado do meu primeiro trabalho, o guião do  telefilme “Mustang”, da SIC 1.

    Este exemplo é interessante (digo eu…) porque combina as duas situações: uma sucessão de cenas distintas, que constituem uma “sequência” no filme; sequência essa que termina por sua vez com uma “sequência de imagens” (a que, por inexperiência, na altura chamei “montagem”).

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    EXT. RUA DE LISBOA – NOITE

    Rafael tranca a porta do Mercedes junto de um RESTAURANTE CHINÊS.

    INT. RESTAURANTE CHINÊS – NOITE

    Rafael entra no restaurante chinês, avançando sem hesitações. Vira para um corredor escuro e desce umas escadas sujas. Os filhos seguem-no, curiosos.

    RAFA
    Não íamos a um casino?

    RAFAEL
    Correcto e afirmativo! Mas este… é uma coisa especial.

    PEPE
    Uma coisa especial?! Aqui?!

    Rafael entra num corredor e passa por uma mesa onde TRÊS CHINESES jogam às cartas.Um dos homens levanta-se e abre-lhe uma porta. Rafael faz sinal aos filhos para o seguirem.

    INT. CASINO ILEGAL – NOITE

    Entram numa sala grande, escura e fumarenta, decorada com peças soltas de mobílias diferentes, mas com bastante gente. O ambiente é animado. Espalhadas pela sala há dois tipos de mesas. Numas estão homens de vários tipos e raças, sentados a jogar às cartas. Noutras estão mulheres, de várias raças e tipos, à espera da companhia dos homens que jogam às cartas. É para uma destas mesas que Rafael se dirige. Senta-se e chama os filhos, para os apresentar a IVONE, uma branca quarentona, e a SORAYA, uma mulata brasileira.

    RAFAEL
    Estes são os meus rapazes – o Rafael e o Pedro.

    SORAYA
    (com sotaque brasileiro)
    Seus rapazes? Mas desde quando você é pai de dois gatões como esses aí?

    RAFAEL
    Há muita coisa que você não sabe de mim…

    SORAYA
    Estou vendo que sim. Se sentem, meninos. Não tenham medo da titia.

    RAFAEL
    Tenham medo dela, por favor. E da Ivone também, não é, querida?

    IVONE
    Especialmente de mim.

    RAFAEL
    Onde é que está o dinheiro, hoje?

    IVONE
    Ali, na mesa do Zézinho. Aquele gordo.

    Os cinco olham na mesma direcção. Numa mesa um pouco mais afastada do que as outras, rodeada por três ou quatro homens de pé, está um HOMEM POSSANTE, muito concentrado nas cartas que tem na mão. Os seus parceiros de jogo são um outro HOMEM DE BIGODES, um CIGANO de meia idade, um CHINÊS novo e o ZÉZINHO. ANÍBAL já vem a caminho da mesa onde está Rafael e os rapazes.

    ANÍBAL
    (para Rafael)
    É melhor substituíres o Chico. Hoje só está a fazer merda.

    Rafael levanta-se e fala para as duas “amigas”.

    RAFAEL
    Não os comam já. Ainda são muito tenrinhos.

    Depois segue Aníbal em direcção à mesa de jogo. Pepe levanta-se também e segue os dois homens.

    INT. CASINO ILEGAL / MESA DE JOGO – NOITE

    Aníbal acerca-se da mesa de jogo, fazendo um sinal ao Chico — o homem dos bigodes. Este arruma as cartas e fala para os outros.

    CHICO
    Por mim já chega. Já perdi a minha conta…

    GORDO
    Nem penses que te vais embora assim. A noite ainda é uma criança…

    CHICO
    Crianças tenho cinco lá em casa. E comem como o caraças.

    GORDO
    (olhando em volta)
    Quem quer sentar-se aqui connosco? Quem é o patinho que quer ser depenado?

    Chico vai para o pé de Soraya. Rafael aceita o desafio.

    RAFAEL
    Se ninguém mais quer, posso jogar eu. É o quê, lerpa?

    GORDO
    Poker, qual lerpa!
    (para o Zézinho)
    Mas quem é este lorpa?

    RAFAEL
    Tudo bem. Só têm que me recordar as regras…

    O cigano ri-se, atira as cartas para cima da mesa e levanta-se, começando a vestir o casaco que tinha pendurado nas costas da cadeira.

    GORDO
    O quê?! Ficamos só os quatro? Assim não tem graça nenhuma…

    MONTAGEM

    Rafael joga poker com os outros três homens.

    Ivone conversa animadamente com Rafa, que presta atenção ao jogo. Chico está abraçado a Soraya.

    O chinês baralha as cartas com profissionalismo. O gordo dá as cartas.

    O dinheiro muda de mãos. O homem gordo limpa o suor do rosto.

    Rafa junta-se ao grupo que assiste ao jogo. Aníbal apoia-se nas costas da cadeira, com um ligeiro sorriso nos lábios.

    Mais dinheiro muda de mãos. Rafael baralha as cartas, mas não como alguém que uns minutos antes nem as regras do poker sabia.

    O gordo vê as suas cartas e limpa a cara.

    Soraya e Ivone bebem. Rafa e Pepe exultam.

    Dinheiro.

    O gordo levanta-se, agarra no casaco e dispara para a saída.

    FIM DA MONTAGEM

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    Notas de Rodapé

    1. “Mustang”, © SIC Filmes 1999 – guião de João Nunes, realização de Leonel Vieira

    7 comentários em “Perguntas & Respostas: Como distinguir cenas e sequências num guião”

    1. Caro João

      Aproveitando esta dúvida, aqui ficam três outras acerca de montagens e sequências de imagens:

      -acha que há um limite máximo de montagens ou sequências no guião de uma longa metragem?

      – como é que estas afectam (ou podem afectar) o ritmo e o conteúdo de um guião?

      -até onde se pode ser “visual” na descrição de uma montagem ou sequência sem atropelar a interpretação que um realizador faz de um guião?

      Abraço

    2. Bernie
      em relação à sua primeira questão, acho que não há uma resposta universal. Tudo depende do estilo, tema, mood do guião que está a escrever. Em alguns as montagens ou sequências de imagens adaptam-se como luvas; noutros seriam completamente despropositadas.

      Porque, obviamente, (e aqui respondo à segunda questão) a inclusão destas técnicas afecta o resultado final do guião e do filme. De que forma os afectam, já vai depender de muitos factores: a sua relevância para a estória, o momento em que entram, o que acrescentam (ou retiram) em economia narrativa, etc. É muito difícil fazer juízos ou afirmações universais acerca deste assunto.

      Já em relação à terceira questão, acho que deve ser o mais “visual” possível não só na descrição das montagens ou sequências de imagens, como na escrita de todas as cenas. Isso não é atropelar o realizador; é cumprir bem o seu papel de autor de cinema ou televisão. Só “atropelará” o realizador se traduzir essa escrita visual em indicações de câmara, erro que os guionistas cometem muitas vezes. Mas todas as cenas podem ser descritas de uma forma visual sem usar indicações de câmara.

    3. Pingback: Perguntas e Respostas: cabeçalhos principais e secundários | joaonunes.com

    4. Joao, quando dentro das Montagens ou Sequencias tiver pequenos dialogos ou simplesmente algumas palavras ou frases ditas pelos personagens. Como as coloco? Posso colocar dentro da Mointagem ou Sequencia um Titulo???

      ABraços

      1. É tudo uma questão de sensibilidade… e bom senso ;-)
        Se for apenas uma frase, uma exclamação, etc, coloque dentro da montagem, usando as convenções normais.
        Se, pelo contrário, houver diálogos mais elaborados, então já não deve ser tratado como Montagem, mas sim como cenas normais, com cabeçalho, descrições, etc.

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