No processo de escrita de um guião, entre a sinopse e o texto final, encontramos por vezes um documento a que se chama tratamento.
Num artigo anterior apresentei a seguinte definição para essa importante etapa do processo criativo:
Tratamento ou Argumento é uma sinopse mais longa e envolvente, que se lê quase como um conto. Pode ter entre 5 e 30 páginas. Se for muito mais longo, e incluir trechos de diálogos, pode ser tratado por “scriptment”, uma mistura entre “script” e “treatment”. O tratamento é o que corresponde mais de perto ao sentido tradicional em que se usava a palavra Argumento.
É pois um documento mais artístico do que técnico, onde narramos a nossa estória, passo a passo, com a preocupação de criar um texto cativante que dê uma boa imagem do guião que queremos escrever.
Antes do mais, devo deixar claro que não é obrigatório escrever um tratamento da sua estória, tal como não é obrigatório escrever uma logline ou uma escaleta 1.
Cada autor tem o seu processo de escrita específico, com passos e etapas diferentes.
Alguns tendem a ser extremamente estruturados, avançando passo a passo e planificando tudo em detalhe antes de abrir o programa de escrita de guiões. Outros preferem mergulhar o mais rapidamente possível na escrita do guião, para não perder uma alegada espontaneidade.
E entre estes dois extremos há infinitas variações, cada uma com o mesmo mérito que qualquer outra.
O importante é encontrar a que funciona melhor para nós, e isso só se consegue experimentando várias opções e modos de fazer.
As duas funções do tratamento
Se está a considerar escrever um tratamento, lembre-se que ele tem duas funções principais.
Em primeiro lugar, é uma ferramenta muito útil para explorar todo o potencial da nossa estória.
Livres de preocupações técnicas e, sobretudo, sem a necessidade de escrever diálogos, podemos focar-nos apenas no desenho dramático da nossa narrativa, nos seus altos e baixos, avanços e recuos, conflitos e surpresas.
Por ser mais curto e simples de escrever que um roteiro, um tratamento permite-nos aventurar-nos em todas as direções criativas, sem medos nem limitações.
Se um caminho não der certo, podemos sempre voltar atrás e explorar outras vias. É melhor perceber que não devíamos ter seguido um certo rumo ao fim de três páginas de tratamento do que depois de 30 de roteiro.
Além disso, a escrita do tratamento permite-nos também ir explorando o tom e o estilo certos para a nossa estória.
O que é que funciona melhor: uma abordagem mais realista ou mais fantasista? Mais leve ou mais pesada? Com humor ou terminalmente séria?
É melhor testar variações para responder a estas questões durante a escrita de um tratamento do que quando já estivermos mergulhados na escrita do roteiro.
Em segundo lugar, o tratamento é também uma excelente ferramenta de venda da nossa estória.
É mais fácil convencer produtores, realizadores ou atores, que são geralmente profissionais muito ocupados, a ler um tratamento de 12 páginas do que um guião de 120.
Se tivermos feito um bom trabalho na escrita do tratamento, este conseguirá transmitir toda a excitação, drama e riqueza da nossa estória. Os tais profissionais, apesar de continuarem muito ocupados, deverão sentir que o passo seguinte é, inevitavelmente, ler o guião completo.
Se assim for, a “venda” está meio feita.
Como escrever um tratamento
Lembra-se de que, acima, referi que o tratamento é um documento mais artístico do que técnico?
Isso é verdade e, como tal, não há uma única maneira “certa” de o escrever. Cada autor aborda-o à sua maneira, de acordo com o seu estilo, experiência e objetivos.
Verificamos isso lendo alguns dos (poucos) exemplos de tratamentos que se encontram disponíveis na net.
Podemos começar, aqui mesmo no blogue, com um tratamento/sinopse longa do autor Aguinaldo Silva para uma telenovela.
Seguimos com as bíblias/tratamentos para as séries The Wire, Fargo e True Detective.
E podemos terminar lendo o extenso “scriptment” que James Cameron escreveu com a sua visão do Homem-Aranha, uma visão que, pessoalmente, gostaria muito de ter visto no cinema.
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Cada um destes autores aborda a escrita dos tratamentos de uma forma diferente. A única coisa em comum entre todos é a sua vontade de os escrever de uma forma vívida e excitante, com o claro objetivo de agarrar o interesse dos potenciais leitores.
Mas se eu deixasse o texto por aqui iria decepcionar muitos leitores, que esperam destes artigos algumas dicas e sugestões mais práticas e aplicáveis.
- Um tratamento tem normalmente entre 5 e 30 páginas, dependendo do nível de detalhe que quisermos introduzir. Os meus tendem a ter entre 3 e 6 páginas, para episódios de televisão, e 10 e 15 páginas, para as longas metragens, mas isso não é regra: o que vou oferecer no final deste artigo saiu um pouco mais longo, com 25 páginas.
- Tal como um guião/roteiro, o tratamento deve ser escrito na 3ª pessoa do presente do indicativo. Ou seja, escrevemos “Os dois correm por um beco e param junto a um muro” e não “Os dois correram por um beco e pararam junto a um muro”. Dessa forma o leitor sente-se mais envolvido com a ação, como se esta fosse algo que está a acontecer neste momento, à sua frente.
- Devemos apresentar os principais personagens com algum detalhe, na sequência da narrativa ou dedicando-lhes alguns parágrafos logo no início.
- Não devemos ter a preocupação de dividir explicitamente o tratamento em cenas, e muito menos em atos. A escrita deve ser mais fluida, como num conto, explorando alguns momentos e situações com mais detalhe e passando mais rapidamente sobre outros.
- Normalmente seguimos a ordem da estória tal como a queremos contar, mas podemos fazer alguns desvios para incluir aspectos relevantes da vida passada dos personagens, pequenos esclarecimento sobre as suas intenções e personalidade, explicações sobre o mundo da estória, reflexões temáticas, e até detalhes sobre os nossos objetivos ao escrevê-la.
- Devemos incluir os principais momentos da estória, com destaque para as grandes viragens e inflexões que marcam a narrativa.
- Quando possível, devemos escrever visualmente, mas como temos algumas limitações podemos explicar o que for necessário, se isso nos ajudar. Nos guiões não é normal fazer grandes considerações sobre os estados mentais dos personagens, para além do que podemos mostrar através da imagem e do som. Por exemplo, em vez de dizermos que um personagem está triste, iremos descrever que ele vira as costas e limpa discretamente uma lágrima. Mas num tratamento, em que não chegamos a esse nível de detalhe, é mais aceitável descrever o que os personagens podem estar a pensar ou a sentir em alguns momentos – desde que não exageremos.
- O mesmo se passa com os arcos de transformação dos personagens. Nos guiões devemos deixá-los implícitos; os leitores/espectadores percebem as transformações dos personagens exclusivamente através das mudanças nos seus comportamentos, ações e decisões. Mas num tratamento, a bem da clareza, podemos chamar a atenção para uma mudança ou transformação que de outra forma poderiam passar despercebidas.
- Apesar de num tratamento não ser preciso incluir diálogos, podemos fazê-lo em alguns momentos específicos, para incluir uma frase especial, enfatizar uma determinada sequência ou revelar algo sobre um personagem. Autores como James Cameron fazem-no com tanta frequência que os seus tratamentos ficam quase a meio caminho do guião, e daí usarmos o termo “scriptment” para os referir.
- A nossa principal preocupação deve ser sempre a de escrever da forma mais cativante e excitante possível. Queremos contagiar os leitores com o entusiasmo que sentimos pela nossa estória, mostrando-lhes o que a torna tão especial.
Um modelo para os tratamentos
Cada estória pede para ser contada de uma forma diferente e cada autor tem um estilo próprio de estruturar as suas narrativas.
Mas se está a sentir algumas dificuldades em escrever um tratamento, pode começar por guiar-se pelo modelo que sugiro a seguir.
Depois de escrever uma primeira versão do seu tratamento seguindo estes passos será mais fácil transformá-lo e adaptá-lo às necessidades específicas da sua estória e ao seu estilo pessoal.
- O Mundo Inicial
Comece por introduzir, numa linha ou duas, as grandes linhas da estória que vai contar a seguir.
Depois, faça uma pequena apresentação dos protagonistas e personagens principais.
Descreva a situação inicial da estória, o mundo “normal” dos personagens, o status quo vigente. Aproveite para aprofundar um pouco mais sobre os personagens, quais são os seus desejos e necessidades. - O Desequilíbrio
De seguida passe a explicar o que acontece que vem causar um desequilíbrio nesse status quo e vem balançar essa normalidade. É aquilo a que, normalmente, se chama o inciting incident, o incidente incitante, ou seja, o detonador da estória.
Se necessário, explique como isso afeta os seus personagens e torne explícita a questão dramática que essa disrupção vem causar.
Explique como os protagonistas reagem a essas novas circunstâncias. - O Mundo Especial
A partir daqui, estamos no mundo especial da estória, o seu miolo, que normalmente constitui o segundo ato.
Selecione os momentos mais marcantes e as maiores dificuldades que os protagonistas vão enfrentar.
Não deixe de explorar todas as possibilidades de conflito que vão surgir, sempre em crescendo.
O importante é o leitor sentir o movimento perpétuo da estória, o seu avanço irreprimível por um mecanismo de causalidade: o personagem toma uma decisão e isto acontece, e em consequência o personagem faz isto, o que leva aquilo, e, consequentemente, a uma nova decisão do personagem, que por sua vez conduz a… e etc. - O Ponto Médio
É muito normal que a meio da estória algo de importante aconteça, que leve a uma mudança de rumo ou de perspectiva sobre os acontecimentos. Se isso acontecer na sua narrativa, não deixe de lhe dar o devido destaque.
- Mais dificuldades
Continue a descrever as decisões, dificuldades e conflito crescente que os seus personagens vão enfrentar.
Pode descrever com mais detalhe as situações mais importantes e referir mais superficialmente algumas outras.
Prossiga até sentir que o leitor está desesperado por saber como tudo vai acabar. - O Final
Descreva então, com o detalhe necessário, o clímax da sua estória – os protagonistas conseguem ou não os seus objetivos, e têm ou não o resultado esperado.
Se tiver feito bem o seu trabalho nas páginas anteriores, o leitor do seu tratamento vai sentir um pouco das emoções e da catarse que esperamos que o espectador da obra final venha a sentir quando a vir.
Termine com a descrição do novo status quo, ou seja, como fica o mundo dos personagens em resultado de todos os eventos anteriores.
Se quiser, feche tudo com alguma consideração temática ou reflexão mais profunda. Mas não se alongue demasiado; se conseguiu cativar os seus leitores até aqui, não os perca no final.
Quase todas as estórias podem ser contadas seguindo este modelo, o que não quer dizer que sejam pouco imaginativas ou banais.
Por exemplo, poderíamos aplicar estes seis passos para escrever os tratamentos de Fight Club, Jojo Rabbit, Juno, Emma, ou Tudo em todo o lado ao mesmo tempo, e todos estes filmes são excelentes e completamente diferentes entre si.
Conclusão
Pode nunca ter necessidade ou vontade de escrever um tratamento para a sua estória.
Mas caso essa vontade ou necessidade surjam, encare as dicas e recomendações deste artigo como o Bruce Lee sugeria aos seus discípulos: “Absorva o que é útil, elimine o que é inútil e adicione o que é especificamente seu.”
Termino com uma última recomendação.
Já escrevi um artigo, cuja leitura aconselho, sobre as razões porque nunca devemos escrever de graça para outras pessoas.
Os tratamentos estão incluídos nesta recomendação.
Se está a escrever para si, a desenvolver um guião em spec, o tratamento provavelmente nunca será remunerado.
Mas se está a escrever por encomenda de um produtor, aplica-se outra lógica. O tratamento é uma etapa do processo e, como tal, também deve ser pago.
Assegure-se de que o seu contrato (não está a escrever sem contrato, pois não?) inclui essa etapa e a respectiva remuneração.
Se me quiser agradecer este conselho, baixe o brinde que ofereço de seguida e pague-me um café e um pastel de nata.